L., O Mosteiro e os monges. 2013. Hotel Real Abadia, Alcobaça.
Humano. Tremendamente humano (youtu.be/PpLydrSMeKE).
X. O senhor
X. foi como um segundo
pai. Desde os meus treze anos quando entrei no Escutismo, que assim foi.
Explicou-me, em reunião com outro amigo, agora elevado a outra dignidade, como
era. E nunca fiz a coisa por menos. Nunca faço, porque nunca mais deixei de
fazer. Desde então, e talvez nos genes, certamente na educação reta.
Demorei a
escrever porque não consegui fazê-lo mais cedo. O mais comum é vir de um
funeral e escrever como catarse do sofrimento. Não pude. Lá onde está, no
céu que brilha sobre cada um de nós, como referência de caminho, ele
compreende... Várias vezes me agarrei às teclas e todas as larguei, por
dor. Assim uma dor de uma cirurgia íntima que se sabe inevitável, mas que se
adia, coisa de homem, que somos, no fundo, crianças, frágeis, por mais
machos-alfa que nos ergamos.
Ascendeu,
lá pelo final de outubro deste ano misto de 2014, com uma vida cheia de 88
anos, rijo e lúcido até ao fim. Fim que sabia ser o princípio de outra vida. De
descanso e, finalmente, plenitude. Ele brincava comigo dizendo que o problema
maior seria se, depois de tanta luta, não existisse céu: replicava eu,
confessando-me condenado às profundezas do inferno, até minha irmã me ter
censurado para parar com o disparate... Se é normal passar pelo Purgatório para
largarmos, todos, algum lastro de vaidade, estimo que lá fique pouco tempo.
Penitente como era, há-de chegar ao céu sem demora.
Tratávamos
mutuamente por «meu
comandante». A diferença de idade, que nada lhe dizia, não tinha efeito na
deferência. Camaradas, veteranos de muitas guerras, e pazes, umas ganhas e
outras perdidas. Saldo positivo, desde logo porque é no caminho que está a
felicidade. O prazer é no combate. Como a honra.
Exerceu a
atividade profissional de técnico
de contas, escriturando livros com uma caligrafia impecável e tinha uma
paciência de santo para patrões caprichosos que se incomodavam com diferenças
de tostão até que ele lá descobria o erro de funcionários.
Mas onde
ganhou evidência, apesar da humildade, foi no serviço
do próximo, em Alcobaça. Começou cedo a trabalhar desinteressadamente para
os outros, ainda jovem, no Asilo de Infância Desvalida Álvaro Possolo. E depois
esteve nos órgãos sociais, frequentemente na direção ou no conselho fiscal, da
maioria das associações da terra, de que destaco algumas entre muitas
(Bombeiros, Ceeria, Clube de Campismo, Banda, Orquestra Típica) – falho
provavelmente outras, pois escrevo de memória.
Foi
indispensável no Agrupamento
n.º 58 do Corpo Nacional de Escutas, de São Bernardo, em Alcobaça, onde
serviu como secretário e supradirigente, mais chefe do que os chefes. E ainda
na Junta de Núcleo do Oeste. Preferia a discrição e a influência, à evidência e
ao mando. Perdeu o braço esquerdo num acidente, ao serviço do Escutismo. Mas
durou-lhe pouco a consternação, fazendo tudo o que antes fazia, com exceção de
dormir em campo e de tocar bandolim ou viola, como antes fazia - ficava-se por
uma harmónica pequenina que usava para distrair lobitos... Gozava com a
própria situação e respondeu a uma senhora, que o confortava por ser
melhor ter perdido o braço esquerdo do que o direito, que... realmente... se
tivesse morrido… tinha sido pior!... Não se atrapalhava. Usava os dentes e um
ponteiro para clicar no ctrl do teclado...
Teve uma
função decisiva na Santa Casa
da Misericórdia de Alcobaça, fundada por cristãos em 1563, mas que agora
atravessa uma fase de pendor laical, que leva à embaraçada elisão do nome Santa Casa. Foi
secretário da mesa administrativa - provedor funcional, na prática, durante os
mandatos de Joaquim Augusto de Carvalho ou de Tarcísio Trindade. Perdido o
hospital no furor estatizante - e ainda não devolvido à irmandade -, esteve depois
na edificação do Lar. Recuperou a coroa real do timbre do brasão da
Misericórdia, decapitado em 1974, e conseguiu repor-lhe o santo nome. Conservou
o património, e preservou o arquivo, anos a fio, à parte a delapidação dos
tempos revolucionários em que desapareceram peças de valor. Gostava de me
mostrar, na Casa do Despacho, um livro de atas da assembleia, de onde tinham
sido arrancadas folhas e mal coladas outras, num trabalho tosco de algum
revolucionário arrependido. Trouxe o nosso amigo Prof. Gérard Leroux, um
apaixonado por Alcobaça e pelo seu mosteiro, para organizar o arquivo da
Misericórdia, e juntos dirigiram as obras de recuperação da Igreja homónima.
Esteve
também no desenvolvimento da Caixa
de Crédito Agrícola de Alcobaça, identificando e participando nas
negociações de compra do espaço da sua sede e apoiando ao longo dos anos, na
direção, a administração prudente, e de crescimento sólido, de José Fernando
Maia Alexandre.
Cuidou
muito do Mosteiro nos anos tumultuosos, em que ninguém
protegia nada e os roubos foram muitos. Pintava a verde o contorno dos painéis
de azulejos do antigo tribunal e dos painéis do exterior do Mosteiro, junto à
capela de Nossa Senhora do Desterro, para significar aos larápios que estava a
acompanhar o andamento dos furtos. Entendia que as pedras são importantes, mas
as pessoas são mais. Vivas. E, por isso, acreditava no nosso projeto de retorno
dos monges de Cister a um cantinho do seu mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.
Gostava
de cuidar do património público, antes de ter vindo a moda, e
criou coleções,, que mandava encadernar, de publicações locais, que guardava carinhosamente
numa dependência da sua casa antiga com vista magnífica para o Mosteiro:
Empenhava-se a recuperar coisas e papéis, e vibrava a agricultar frutos e flores,
no quintal e na sua quinta do Casal do Botas. Cuidava da natureza e do
património como extensão da família, esposa e filhos e neto, e irmãos e
descendentes, que acarinhava. Curioso da história, da cultura, das artes
(caligrafia e fotografia), da música (tocava e cantava). Polifacetado, como são
os grandes homens.
A sua Alcobaça foi uma terra de contrastes.
Desenvolvida desde o século XVI à volta da cerca do Mosteiro, o burgo teve
sempre com este uma relação de amor e de inveja, de orgulho e de despeito. A
vila tinha a Fonte dos Talassas mas também a rua «Dezesseis de Outubro» que
assinala a vergonhosa data em que foi assaltado o mosteiro pelas tropas
napoleónicas, depois saqueado o pela população e queimados alguns bens, viu ser
destruída à bomba a Igreja Matriz, ser demolida a capela da Senhora da Paz e
dessacralizada a Igreja de Santo António. Alcobaça, núcleo geo-histórico de
Portugal, cabeça da Ordem de Cister que consolidou a independência do País, com
a organização económica e a criação de bem-estar nas populações, foi uma
povoação doravante sujeita à divisão laica-religiosa, à moda das novelas de Giovannino
Guareschi, com uma ativa maçonaria antirreligiosa aliada a um setor
criptocomunista burguês, desejosa de correr com a Igreja do mosteiro. X. era um
plebeu, avesso às linhagens velhas e novas da oligarquia local, e dizia que
Alcobaça tanto era do senhor Dr. N. como da Maria dos Três Cus...
Foi por
causa dessa divisão absurda, num povo desejoso de fazer a paz com a história,
que tive a ideia, e promovi, com a ajuda dele, de outros conterrâneos amigos e
de empresas, a edificação de uma estátua
a São Bernardo, sem qualquer comparticipação do Estado, que a Câmara deixou,
após peripécias várias e muita paciência nossa, pôr a meio quilómetro do
Mosteiro que o santo mandou erguer. Brincava com ele: a Câmara desterrou o São
Bernardo para a rotunda da escola D. Inês de Castro e quer colocar a D. Inês de
Castro junto ao mosteiro que o santo mandou erguer…
Era muito
atento às notícias locais e colaborou, durante décadas, na contabilidade e não
só, no jornal «O Alcoa» -
um quinzenário da paróquia, resistente ao recuo da Igreja para a sacristia, que
mantém independência face ao poder político, e deve ter, por aí, metade da circulação
do Diário de Notícias.
Depois de
eu ter entrado para o Escutismo,
esteve sempre comigo. Primeiro, acompanhando a formação, depois orientando e a
seguir trabalhando em conjunto. Com a evangelização que o atual bispo D. José
Traquina, fez enquanto seminarista e jovem padre, em Alcobaça, e que germinou,
com o padre Mário Rui Pedras na criação do escutismo no Valado dos Frades e na
Benedita, e a colaboração de António Soares e Diamantino Pascoal, consolidou-se
o agrupamento. E então fomos semeando, ou ajudando a plantar, com outros irmãos
de fé e de nós, agrupamentos em Alfeizerão, Vimeiro, Famalicão da Nazaré, São
Martinho do Porto, Pataias e Maiorga. E liderando a resistência pacífica à
invasão do IPPC/IPAAR e expulsão da Igreja do Mosteiro, mantendo instalações da
catequese e garantindo uma sede para o Escutismo.
E, depois
do Escutismo, quando a família precisou de uma atenção que a intensidade de
trabalho não consentia, continuou comigo,
nos iniciativas e projetos que eu realizava: a elevação de Alcobaça a Cidade; o
Encontro Nacional de Mosteiros, Conventos e Igrejas afetos ao IPPAR que ergueu
um «basta!» na tomada de espaços e de obras de arte pelo Estado à Igreja; a Associação
para o Desenvolvimento da Região; a defesa da unidade do concelho de Alcobaça,
a Academia de Cultura, a estátua de São Bernardo.
X. nunca teve qualquer cargo
autárquico, nem foi candidato. Era cristão e homem de fé, antigo membro da
Ação Católica e adepto da doutrina social da Igreja. E via com preocupação,
como outros amigos bairristas - uns que já lá estão no céu à espera dele para
uma festa e outros que nos havemos de lhes juntar -, a decadência de Alcobaça.
Quando a
exigência moral da luta contra o estatal abuso sexual de crianças e o combate
político nacional se sobrepôs, ficou triste por eu preferir abdicar de
Alcobaça, um sonho que tive e se evanesceu. Mas compreendeu o esforço de me
concentrar na Pátria. E,
embora, nunca mo dissesse - nem eu lho perguntasse... -, acho que até comprou
um computador com ligação à net para me ler. Havia coisas que não explicávamos
um ao outro. Queria que eu me acomodasse um pouco para evoluir, pois achava um
desperdício a luta nacional, que via inconsequente. Creio que, no fundo,
compreendia a minha opção. Contactado telefonicamente, no auge do processo
que me pôs o primeiro-ministro, por uma jornalista do DN, para opinar sobre mim, , fez-lhe uma série de confidências
exageradas sobre o meu caráter e contou que eu já não desceria da quinta para a
cidade, senão por toque de sino. Pediu que não publicasse. No dia seguinte, lá
estava o folclore mal impresso. Percebeu o jogo de esgrima florentina em que
nos cercam capas, capuzes, máscaras e sombras, e que nesse campo temos de ser
ágeis na esquiva e furtivos na espada.
X. era a
pessoa mais popular que conheci. Fazia amizades facilmente.
Cumprimentava efusivamente, e falava com todos e com mais alguns. E toda a
gente o estimava, mesmo adversários de convicções e de clube (era do Sporting,
como eu). Tornava-se um exercício penoso, se houvesse pressa, atravessar a
praça do mosteiro com ele, porque podia demorar três quartos de hora nos
trezentos metros da farmácia aos correios. Uma vez perguntei-lhe quem era aquele
indivíduo que o havia saudado e a quem perguntou pela família, errando na
prole, e ele confessou-me que não fazia a mínima ideia,,, Nesses casos,
improvisava, admitindo o engano e respondendo: «pois é, já me esquecia!...». Costumava
sair-se bem...
Conservador
nos princípios, era heterodoxo no estilo.
Tinha um humor fulgurante e corrosivo. Crismava, com alcunhas terríveis,
figurões patéticos. Inventou uma linguagem própria, que usava para espanto das
companhias. Jamais cruel, possuía muito bom coração e comovia-se facilmente,
inundando os olhos negros de lágrimas doces. Exibia uma energia física que
contagiava gente mais nova e com genica presa. E, abraçada a iniciativa,
demonstrava um empenhamento meticuloso nos projetos. Enganava-se, às vezes, nas
pessoas que escolhia, e que o desiludiam por ambições pessoais, e lamentava-se
com amargura, numa penitência muito sofrida. Compensava com histórias
tragico-cómicas que contava com prazer descarado.
Visitava-o com frequência. Tocava à campainha do segundo
andar, subia, na escada empinada os degraus dois a dois, o cachorrito enrodilhava-se
nos meus pés, a senhora D. F. escancarava a porta, cumprimentava-me, perguntava
pela família e invariavelmente dizia: «o teu comandante está no escritório».
Ele recebia-me de gravata ou casaco de roupão, consoante fosse tarde ou noite, com
um abraço apertado, olhos redondos vivos, que só caíram para mais mortiços nos
últimos tempos mas sempre alegres e crentes. Aconchegava-me na cadeira de
entrançado de palha, junto à guitarra pendurada no canto do pequeno escritório,
ele defronte à secretária, onde amontoava, com aparência dispersa, mas por
ordem que sabia, papéis, recortes, discos, lembranças, e uma lupa. Discutíamos
o presente de modo acalorado e, quando excedíamos os decibéis de uso no lar, a
senhora D. F. aparecia a dizer que quem não nos conhecesse suporia que
estaríamos a ralhar. Ele desculpava-se: «ó 'Miga, estamos só a falar».
Experiente das coisas e dos homens, era cético sobre a possibilidade de grandes
mudanças nas instituições, mas isso não o impedia de se empenhar a fundo nos
projetos em que participou.
Partiu.
Mas gente como ele, fica sempre. Nas memórias e nos corações. Connosco. Não são
carga. São lanternas para nos mantermos na estrada, a direito e sem desvios.
Com fé e força.
X.
merecia uma rua, pelo exemplo de trabalho pelos outros que a sua vida inteira
foi. Preferencialmente, a sua, em vez do nome almirante Cândido dos Reis que
povoa para-aí-metade das cidades e das vilas do País.... Mas entendo que, lá
onde se encontra, verá este facto com ironia e consolo. Foi para Deus que
trabalhou. Deus o guarde na Sua Glória!
Atualização em 27-7-2015.