segunda-feira, 14 de março de 2011

Bluff socratino


O motivo do bluff do primeiro-ministro desta noite, 14-3-2011, na declaração em directo ao País terá sido a imposição pela União Europeia de os pacotes de austeridade (as actualizações dos Programas de Estabilidade e Crescimento - PECs) serem apresentados e votados no Parlamentos. Uma decisão extraordinária que se compreende por causa do minoritário Governo português e da afirmada rejeição do novo PEC pelas oposições.

Desde sexta-feira, 11-3-2011, que o próprio José Sócrates, os socialistas, e porta-vozes oficiosos nos media, diziam que o PEC não teria de ser apresentado no Parlamento, apenas algumas (poucas) medidas parcelares de aplicação já em 2011, pois sabiam que a oposição chumbaria o programa. Contudo, no Conselho de Ministros das Finanças dos países da Zona Euro (Ecofin), de 14-1-2011, essa obrigação excepcional foi tomada para resolver o «impasse» em Portugal, pois sabiam que, de outro modo, Sócrates adiaria indefinidamente a aprovação dessas reformas. A União Europeia, desde logo a Alemanha, não aceita a concessão aos países em dificuldades de crédito nos empréstimos-às-pinguinhas, da desejada «flexibilidade» do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF), sem a aprovação imediata de reformas estruturais nos países beneficiários dessa ajuda: primeiro a aprovação das reformas, depois os empréstimos...

Encurralado, apresentando-se com os papéis do discurso na mão, simulando, todavia, a urgência nacional e a espontaneidade da franqueza de dispensar o que (lhe) havia(m) escrito, como se falasse de improviso... enquanto o lia, sem qualquer hesitação mas com lapsi linguae denunciadores, nos telepontos laterais, informou que apresentaria o PEC na Assembleia. Como já não pode contornar o Parlamento, representou-se de vítima, de que não é ele a abrir a crise política, e fez o costumeiro número de chantagem sobre as oposições, a quem recordou o interesse do País em mantê-lo na imunidade do poleiro. Ao mesmo tempo, desculpou-se vagamente de «equívocos» na apresentação do quinto pacote de austeridade em cerca de um ano, na passada sexta-feira, dia 11-3-2011, dizendo que queria privilegiar os portugueses com a informação em primeira mão (sobre o Presidente, sobre a Assembleia e sobre os parceiros sociais?!...). Uma lástima. Já breve, para os portugueses que o sofreram tanto.


* Imagem picada daqui.

Prof. Bonifácio Ramos reclama a demissão do procurador-geral da República

A TVI passou na sexta-feira, 11-3-2011, uma peça jornalística de Carlos Enes sobre o caso do sorteio, ou nomeação, do Dr. Júlio Castro Caldas como relator do processo disciplinar aos procuradores Vítor Magalhães e Paes de Faria, responsáveis pelo processo Freeport, em que era referido José S., hoje primeiro-ministro e que foi colega ministro do relator. Diz o texto da notícia (ver também o video):

«Freeport: despacho contraria PGR
TVI teve acesso a documento que contraria Pinto Monteiro no caso do sorteio do relator do processo Freeport

Por: Redacção / Carlos Enes | 11- 3- 2011 21: 15

O processo que pode levar à suspensão dos procuradores do processo Freeport vai ser relatado por Júlio Castro Caldas, que foi nomeado em 2005 pelo Governo de José Sócrates para o Conselho Superior do Ministério Público.
Pinto Monteiro garante que a escolha do antigo colega de José Sócrates no Governo de Guterres foi feita por sorteio. Mas a TVI teve acesso a um documento que indicia o contrário.
O processo disciplinar chegou no dia 8 de Fevereiro à Procuradoria e, no dia seguinte, Castro Caldas estava escolhido. A 8 de Fevereiro, os autos foram recebidos na PGR e conclusos à vice-Procuradora-Geral da República, em substituição do procurador.
O processo foi de imediato despachado por Isabel São Marcos, número dois de Pinto Monteiro. A vice-PGR remete o processo ao Conselho Superior do Ministério Público e designa como relator Júlio Castro Caldas. O despacho é assinado a 9 de Fevereiro.
Este documento põe em crise a afirmação de Pinto Monteiro.
Vários conselheiros, de resto, garantem à TVI que nunca houve sorteios para os processos disciplinares. O Estatuto do Ministério Público, aprovado por lei da Assembleia da República, manda que os processos disciplinares sejam distribuídos por sorteio. Se não faz sorteios, Pinto Monteiro viola a lei.»

O Prof. Doutor José Luís Bonifácio Ramos deu uma entrevista mais longa à TVI, em 11-3-2011, ao jornalista Henrique Garcia, sobre a questão do sorteio do relator deste processo e situações, que a serem confirmado o que se alega, gravíssimas, pela imputação de «falta de legalidade» na Procuradoria-Geral da República.

As situação denunciadas são gravíssimas e não podem, portanto, ser negligenciadas, devendo ser objecto de competente inquérito. Mas, enquanto a vara do inquérito não chega, as costas não podem folgar, nem consentir-se que possa alguém duvidar que não é respeitada integral e escrupulosamente a lei. É legítimo que o Presidente da República seja informado sobre a situação da Procuradoria-Geral, para poder agir em conformidade.

Limitação de responsabilidade (disclaimer): As entidades referidas nas notícias dos media que comento não são arguidas ou suspeitas do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade.

A dependência externa do Portugal socialista

O Bank for International Settlements (Banco de Compensações Internacionais) acaba de publicar o seu relatório trimestral, com a exposição dos bancos estrangeiros aos países, segundo dados do final do 3.º trimestre de 2010. Coligi os dados da exposição dos bancos estrangeiros a Portugal, no final do 3. trimestre de 2011 - p. 15 do relatório «Highlights of BIS International Statistics - BIS Quarterly Review - March 2011» - e republico-os (os valores aparecem aqui em milhares de euros e foram convertidos à taxa de câmbio de hoje, 14-3-2011,do EUR/USD=1,395):


Clique no quadro para o aumentar



No final de Setembro de 2010, a dívida de Portugal aos bancos estrangeiros era de 230 mil milhões  de euros contra 199 milhões da Grécia (consulte-se a página 15 do relatório e converta-se para euros à taxa de câmbio actual)...

Mais: nesta data, os bancos espanhóis detinham 33,7% dos créditos sobre Portugal, mais do dobro da exposição a Portugal do que os bancos alemães (15,1%) e do que os bancos franceses (14,2%), esta com grande volume de crédito ao sector público (11.500 milhões de euros) - e ainda bastante mais do que as instituições financeiras dos EUA (14,7%), cujos créditos se concentram nos derivados e noutros produtos financeiros. Isto significa que a maior debilidade estrangeira reside nos bancos espanhóis e que os bancos da Alemanha e da França, apesar de terem volumes de crédito significativos (34 mil milhões e 32 mil milhões de euros) não estão assim tão dependentes quanto face à Grécia. Portanto, não se conte com especial tolerância da Alemanha, nem da França, para com a dificuldade portuguesa de pagamento.

Aliás, para não deixar dúvidas, no Telegraph, de ontem, 13-3-2011, lá vem a notícia de que «a Chanceler de Ferro não podia ter sido mais clara: "Quem quiser crédito tem de cumprir as nossas condições"».

Para obter a promessa do crédito às pinguinhas (a desejada «flexibilização» do Fundo Europeu de Estabilização Financeira), o Governo socialista teve de apresentar a contrapartida de um plano de austeridade severo. Creio que o Governo socratino já negociou secretamente o plano de socorro financeiro com a Comissão da União Europeia e o Banco Central Europeu (BCE), sem dar conhecimento ao Presidente da República nem ao Parlamento, para usar quando não conseguir obter financiamento nas emissões de dívida. O que deve estar próximo, pois, como os mercados não têm a mínima confiança nos socialistas, Sócrates esfumou o efeito positivo do PEC V, um pacote de austeridade severíssimo, num dia de bolsa - as taxas estão ao nível de sexta-feira, 11-3-2011, de manhã. Não há bluff que lhe valha.

domingo, 13 de março de 2011

O limite do sacrifício: uma análise do discurso de posse de Cavaco Silva



discurso de tomada de posse do segundo mandato como Presidente da República do Prof. Aníbal Cavaco Silva, em 9-3-2011, constituíu justamente o início de uma nova fase na política nacional.

Por má vontade e má-fé, os discursos do Prof. Cavaco Silva, desde que se tornou Presidente da República, em 2005, passaram a ser consideradas como ofensivos ou inócuos, pelos políticos e opinadores de esquerda e de sectores da direita. Se antes, os opositores, à esquerda e à direita, do ministério de Santana Lopes, lhe louvavam as intervenções como certeiras e fulminantes, após a eleição passou a ser um considerado um adversário provinciano e excluído (remetido para o ostracismo dos muros de Belém, um procedimento clássico que também durava dez anos...), enquanto, pela sua modernidade e liderança, se rendiam loas e cantos ao «engenheiro José Sócrates» - título profissional de engenheiro, aliás, de que nunca abdicaram chamar-lhe, nem quando lhe descobri a careca, em 22 de Fevereiro de 2005. Não era a avaliação neutra de quem queria uma intervenção mais forte ou dura, naquela ou noutra ocasião, e se sentia desiludido com a «cooperação estratégica» com um primeiro-ministro, cujo carácter, objectivos vis e conduta ditatorial, já tinham sido suficientemente expostos: era o desprezo à esquerda e o colaboracionismo à direita com o socratismo, por táctica sistémica e necessidade de aparição mediática para o derrube da Dra. Manuela Ferreira Leite, como líder do PSD. As intervenções mais duras, como a sua comunicação, de 29-9-2009 sobre a conspiração socratina relativa à vigilância governamental (que um dia há-de ser contada em detalhe) causavam a reacção violenta da esquerda e acusações de loucura vindas dos identificados sectores colaboracionistas/sistémicos da direita (por pessoas que não podiam desconhecer que as denúncias teriam, com certeza, uma base factual consistente e extensa).

O discurso de tomada de posse é bastante rico em expressões que significam desígnios políticos para o País, para um mandato mais interventivo do que o anterior, sujeito à etapa da reeleição. Destaco:
  • «magistratura activa»
  • «discurso de verdade» (e «informação objectiva», «rigoroso», «transparência»)
  • «década perdida» (que justificou com indicadores económicos e factos)
  • «Portugal está hoje submetido a uma tenaz orçamental e financeira»
  • «melhorar a qualidade das políticas públicas»
  • «reformas estruturais» na despesa, na dimensão do Estado na economia e na administração pública, na fiscalidade, na selecção de sectores tradicionais e pequenas e médias empresas
  • «política humana»
  • «limites para os sacrifícios»
  • não a «grandes investimentos que não temos condições de financiar, que não contribuem para o crescimento da produtividade e que têm um efeito temporário e residual na criação de emprego» (isto é, TGV, grandes pontes e novas auto-estradas e vias rápidas)
  • «políticas activas de emprego»
  • «concertação social»
  • «sobressalto cívico» e «portugueses despertarem da letargia», «sociedade... adormecida»
  • «civismo de exigência»
  • «país real»
  • «república social e inclusiva»
  • «pesada herança, feita de dívidas (alusão às parcerias público-privadas)
  • «Jovens... façam ouvir a vossa voz»

Indo ainda mais longe, e aplicando a técnica de análise de conteúdo, regista-se no discurso a frequência das seguintes palavras:
  • Portugal - 24; portugueses (18), portuguesa (12), português (4)
  • Estado - 17
  • jovens - 16
  • economia - 16
  • emprego - 11 (e desemprego - 5)
  • vida - 14
  • todos - 13
  • social - 13
  • empresas - 12
  • futuro - 11
  • sociedade - 11
  • crescimento - 11
  • investimento - 11
  • família (e famílias) - 8

Portanto, quem queira tresler no discurso o neo-liberalismo para situar o Presidente na direita insensível ao drama económico dos portugueses, encontra um discurso social e a referência-matriz a uma «República social e inclusiva», com maior realce à palavra «Estado», ao emprego/desemprego ,com a recomendação de alargamento das «políticas activas de emprego» e à necessidade de reformas estruturais no Estado. E quem queira reduzi-lo ao catálogo do conservadorismo classista acha, afinal, a defesa de uma «política humana» (um conceito a desenvolver em próximas intervenções) , nota que a palavra «família/famílias» é a décima quarta da rol que acimo coligi, e surpreende-se com o apelo ao sobressalto cívico, a um civismo de exigência e à participação dos jovens na vida pública.

O choque socialista, e da esquerda, com o discurso do Presidente é que este constitui uma crítica directa e crua dos resultados do socratismo, de que a esquerda radical foi cúmplice nas políticas de investimento improdutivo e de despesismo do Estado, que conduziram o País à pré-ruína, obnibulado com a distracção das políticas de costumes. Mais, o Presidente sinaliza um limite ao sacrifício dos portugueses. Ou seja, Cavaco Silva disse que já basta.

Não faz sentido excluir o Chefe de Estado do conhecimento e do acordo nas decisões da governação, pois, para lá do que a Constituição obriga (por exemplo, a alínea c do n.º 1 do art. 201.º), ele intervém sobre essas decisões governamentais e do parlamento com a sua competência de promulgação e de remissão para o Tribunal Constitucional de normas controversas ou das quais discorde (art. 134.º alíneas b, g e h). Aliás, segundo a Constituição da República Portuguesa (CRP), o Presidente que «garante a independência nacional» (art. 120.º da CRP) e compete-lhe «pronunciar-se sobre todas as emergências graves para a vida da República (art.º 134.º alínea e), como é, sem dúvida, esta.

Foi o primeiro-ministro José Sócrates que impôs ao Estado uma deriva ditatorial e persecutória que transformaria o País num Estado autoritário, se não existisse a integração na União Europeia. Não foi o discurso do Presidente que provocou a crise institucional: a crise tinha a data marcada da reeelição, pois Sócrates desencadearia a mãe de todas as batalhas, antes de qualquer ataque que lhe provocasse o fim do poder. Foi o delírio de um primeiro-ministro que resolveu iludir o Estado de direito e a divisão dos poderes com a aplicação de um novo regime político de desprezo pelo Presidente da República e pelo Parlamento (e pelos parceiros sociais), contrário ao modelo constitucional. Novo regime que pretende sublimar com a aprovação de um novo pacote de austeridade, negociado com a União Europeia em nome do Estado que não representa sózinho, sem fazer passar esse compromisso no Parlamento e tentando contornar as competências do Presidente da República (virão aí portarias em vez de decretos-lei?...).

O Presidente da República tem inteira razão: há um limite para o nosso sacrifício. Esse limite foi agora violado e justifica uma sanção inapelável. A sanção deve ser aplicada pelos partidos, após o pedido de empréstimo às pinguinhas ao Fundo Europeu de Estabilização Financeira - «no contexto de um programa de estrita condicionalidade» que, segundo a chanceler Merkel, «não fará grande diferença» do pacote do grande empréstimo - e imediatamente após a apresentação do programa de austeridade detalhado no Parlamento.

sábado, 12 de março de 2011

Gerações à Rasca e Governo socialista na boa


As manifestações da Geração à Rasca, hoje, sábado, 12-3-2011,  foram um êxito excepcional: cerca de 300 mil pessoas (200 mil pessoas em Lisboa, 80 mil no Porto e mais gente noutras cidades do País). As manifestações, convocadas por jovens através das redes sociais, transformaram-se num protesto geral contra a situação económica do País e não apenas dos jovens trabalhadores precários e desempregados.

As manifestações foram o sobressalto cívico que o Presidente da República indicou como necessário no seu discurso de tomada de posse, em 9-3-2011.

Os tácticos medrosos deveriam ouvir o povo ou o povo deixa de ouvir os políticos da oposição. O pacote de austeridade está apresentado nas suas linhas de (des)orientação, a ruptura de pagamentos está iminente devido à dificuldade de acesso ao crédito a taxas suportáveis, a necessidade de socorro financeiro do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) da União Europeia e do FMI é inevitável. Não são conhecidas as condições de socorro financeiro do Fundo através da compra de dívida nas emissões primárias - a tal «flexibilização» do Fundo que era desejada pelos países mais endividados - e só na cimeira de 24-25 de Março de 2011 se firmará o novo modo de funcionamento. Mas sabe-se que os empréstimos impõem condições gravosas e supervisão apertada: um protectorado.

O Governo já não tem a confiança do povo português e deve, portanto, ser substituído, através de moção de censura - se Sócrates não apresentar uma moção de confiança - e consequente convocação de eleições antecipadas, mal o Governo socialista recorra ao empréstimo do Fundo Europeu de Estabilização Financeira (FEEF) da União Europeia e do FMI, seja o recurso ao grande empréstimo em tranches ou a empréstimos às pinguinhas. Não pode tolerar-se a continuação do caminho socratino para a ruína do País.


Pós-Texto (21:06 de 13-3-2011): Recomendo a leitura do excelente poste «A prova da realidade», do Paulo Tunhas, no Cachimbo de Magritte.


* Imagem picada daqui.

sexta-feira, 11 de março de 2011

O PEC V e o desprezo de José Sócrates pelo Presidente e pela Constituição

Nota de actualização deste poste (22:54 de 11-3-2011): O acordo socialista de protectorado
Veja-se a declaração conjunta de Durão Barroso e Jean-Claude Trichet sobre Portugal no final da cimeira dos dezassete países da Zona Euro, em Bruxelas, na noite de 11-3-2011. O Governo terá anunciado, em nome de Portugal, e sem consulta, nem sequer informação ao Presidente da República, e nas costas do povo, medidas políticas de conteúdo desconhecido, que irá detalhar num documento a apresentar em Abril («o Governo comprometeu-se com uma agenda de reformas estruturais de longo alcance»). A menção de que «o acompanhamento das políticas será supervisionado de perto pela Comissão Europeia, em ligação com o Banco Central Europeu, no contexto de vigilância reforçada» sugere que Portugal já está debaixo do controlo das instituições europeias (Comissão Europeia e Banco Central Europeu). A intervenção do Banco Central Europeu parece ser uma condição alemã. E foi este acordo de protectorado que o Governo, sublinho, firmou sem consultar, em informar o Presidente da República, nem discutir o assunto na Assembleia da República...
As notícias ainda são escassas sobre o acesso dos países em dificuldades de tesouraria a crédito de emergência. Sócrates não quer pedir socorro financeiro para evitar o controlo apertado do FMI e perder o resto da face política perante os portugueses, tentando o acesso ao dinheiro sem dizer que o pede... Mas não parece que o Banco Central Europeu seja mais suave, ou leviano, do que o FMI...


Uma das marcas indeléveis do consulado de José Sócrates é o desprezo
pelas outras instituições do Estado, um prolongamento do desprezo pelos outros. Não é somente má educação, pois essa cada um tem a que tomou e não tem culpa original de não ter recebido mais, ainda que na chegada à maturidade se possa corrigir a falta com a emulação das maneiras sociais: é um desprezo seu, e do cargo que temporariamente ocupa, pelas competências e funções dos outros órgãos.

Não lembra ao Diabo, mas lembrou-se ele de desrespeitar o protocolo e não ser o primeiro, como lhe obriga o cargo, a cumprimentar o Presidente, em 9-3-2011, após a sua tomada de posse - e depois de um discurso que não lhe agradou.

Os socialistas fizeram críticas absurdas ao discurso de tomada de posse, ponderado e prudente, do Presidente da República sobre os desígnios nacionais, chegando ao nível estratosférico de pretender que estaria em causa, devido a desse discurso, o regular funcionamento das instituições democráticas - o que dizer, então, do discurso de Sampaio de que havia mais vida além do orçamento ou do apoio de Soares ao nóvel «direito à indignação»?... Porém, no dia seguinte, Sócrates decidiu apresentar em Bruxelas, num Conselho Europeu e na cimeira dos países da Zona Euro, assumindo, em nome do Estado português - que não representa sózinho! -, o compromisso de um novo plano de austeridade intitulado «Actualização Anual do Programa de Estabilidade e Crescimento: Principais linhas de orientação» (sic), ou seja, o quinto PEC num ano (desde Março de 2009), anunciado em Lisboa pelo seu ministro das Finanças («Portugal's government Friday pledged a fresh batch of measures to reduce spending and boost revenue», relatou o WSJ, de 11-3-2011), sem discutir o assunto com o Presidente da República, nem sequer o informar do que ia jurar fazer!... Agora sim, ficou ferido o «regular funcionamento das instituições democráticvas. Ainda por cima, a reacção dos mercados às medidas prometidas num novo pacote de austeridade foi levar a taxa de juro a cinco anos das obrigações do Estado português ao nível dos 8%, na tarde de 11-3-2011.

Classificar a atitude do primeiro-ministro de surreal não ajuda; interessa é dizer que o seu desprezo viola a Constituição da República e constitui um acto inaceitável de desrespeito institucional e de ofensa ao Estado de direito que tem de ser oficial e formalmente rejeitado. Então, o primeiro-ministro preveniu na véspera, 10-3-2011, o líder da oposição, Pedro Passos Coelho, e despreza o Presidente da República que a Constituição lhe exige informar?!...

Recordo o que a Constituição da República Portuguesa manda, para lá da competência do Presidente da República na promulgação de decretos e ratificação de acordos internacionais:
«Artigo 201.º (Competência dos membros do Governo)
1. Compete ao Primeiro-Ministro:
c) Informar o Presidente da República acerca dos assuntos respeitantes à condução da política interna e externa do país»
Numa situação normal, este desprezo pela Constituição deveria ter como sanção a demissão imediata do Governo pela sua indecência e má figura. Mas o País atravessa, por culpa principal dos pecos socialistas (cinco PECs num ano...) uma situação de emergência. Portanto, quem comeu a carne - comissões, tachos, contratos, etc., etc. - que roa os ossos:
  1. O Governo PS deve apresentar na Assembleia o novo PEC detalhado (não vale dizer, como na página 5 deste PEC V no que respeita às despesas e receitas de capital, «aumento de receitas através de mais concessões»...) e pedir formalmente à União Europeia o pedido de socorro financeiro que evite a ruptura de pagamentos, numa confissão do fracasso da política que livremente escolheu.
  2. Tal como os demais partidos, o PSD não pode aprovar previamente qualquer medida do Governo, nem viabilizar este PEC ruinoso, esperando que este apresente o documento detalhado na Assembleia da República, reservando a sua posição para depois da análise do documento, não caindo novamente na asneira do tango contra-natura.
  3. Após o pedido de socorro financeiro, e de apresentação do PEC V detalhado na Assembleia da República, o Governo deve ser derrubado, por manifesta incompetetência, falta de sentido patriótico ao arruinar o País sem conseguir evitar o pedido de apoio externo e desrespeito pela Constituição, seja através de uma moção de confiança, seja, se não tiver a coragem de o fazer, através de uma moção de censura dos partidos da oposição.

A realidade acelera. A análise do discurso presidencial fica para logo.


* Imagem picada daqui.

«O cargo de procurador-geral da República assenta na dupla confiança do Governo e do Presidente da República»

curta entrevista de Carlos Enes, na TVI, de ontem, 10-3-2011, ao Prof. Doutor José Luís Bonifácio Ramos sobre o alegado sorteio do relator do processo disciplinar aos procuradores do processo Freeport, Dr. Vítor Magalhães e Paes de Faria, e à situação do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) e da Procuradoria-Geral da República, revela factos e conclusões que, a serem verdade, são de incontornável gravidade. Seria muito útil que fosse realizada um entrevista mais longa ao Prof. Bonifácio Ramos, para que este detalhasse os factos que indica.

O relator designado para o referido processo disciplinar, instaurado, em Dezembro de 2010 pela Procuradoria-Geral da República, pela menção no despacho de acusação do processo Freeport das 27 perguntas que os magistrados queriam ter colocado a José S. e que não puderam fazer por falta de tempo concedido, é o ex-ministro, colega de Governo de José S. e indicado pelo PS (liderado por José S.), para o CSMP, Dr. Júlio Castro Caldas. O procurador-geral da República tinha respondido à TVI que «o processo foi sorteado entre os membros que podiam vir a ser relatores». O jornalista Carlos Enes indica também na peça que vários outros conselheiros do CSMP disseram que isso «não é verdade». E o Correio da Manhã, de 9-3-2011, noticia que «um membro do Conselho disse ao CM que não houve nenhum sorteio do nome e que Castro Caldas foi escolhido directamente pela equipa de Pinto Monteiro ou pelo próprio».

O Prof. Bonifácio Ramos disse na entrevista à TVI (transcrição minha):
«[Há sorteio, ou não há sorteio, no Conselho Superior do Ministério Público nos processos disciplinares?]
Bom, o que eu lhe posso dizer é... eu nunca vi o sorteio. Eu já estou há um ano no Conselho Superior do Ministério Público, eu nunca vi ser realizado um sorteio para a distribuição de processos. E tenho ideia que sorteio não há. A haver é algo de completamente secreto e obviamente não será verdadeiramente um sorteio. E nos termos do Estatuto e do Regulamento o sorteio é uma imposição legal. (...)
O que eu tenho visto é que a legalidade não é cumprida muitas das vezes no Conselho Superior do Ministério Público e, em geral, na Procuradoria. E a situação é de tal maneira grave, é de tal maneira anómala, que era bom que o senhor Presidente da República, já que vai - e acredito que sim - fazer uma magistratura de ruptura, atentasse no que se passa com a Procuradoria-Geral da República e nomeadamente com este procurador-geral.
[Acha que o Presidente da República deve substituir o procurador-geral?]
Eu julgo que não resta muita situação para que este procurador-geral da República se mantenha em funções.»

E o jornalista Carlos Enes termina a peça dizendo que «Bonifácio Ramos denuncia também que as actas das reuniões do Conselho Superior do Ministério Público não batem certo com a realidade» (transcrição minha). Será possível?!...

Tornou-se indispensável que o Presidente da República averigue o que se passa com o Conselho Superior do Ministério Público e os alegados factos de extrema gravidade referidos à procuradoria-geral e exija responsabilidades. A Procuradoria-Geral da República não pode andar em roda livre. E se este procurador-geral entendesse que, por lhe faltar apenas um ano para completar os setenta anos que a lei estabelece como prazo de exercício da sua função, poderia fazer o que entende sem prestar contas a ninguém, enganar-se-ia triangularmente: há uma responsabilidade indeclinável perante o Presidente, o Governo e o povo.

O Presidente não pode sózinho demitir o procurador-geral da República, pois essa decisão tem de ser proposta pelo Governo que não está interessado nisso, pelas razões que são evidentes. No entanto, o Presidente da República pode retirar-lhe expressamente a confiança e, nessa circunstância, não posso crer que o beirão Fernando Pinto Monteiro não se demita do cargo. É que, se não chegassem a necessário sentido de Estado, a imagem da justiça e a preservação da democracia, lembro que o próprio sítio da procuradoria-geral refere que «O cargo de procurador-geral da República assenta na dupla confiança do Governo e do Presidente da República»...


* Imagem picada daqui.

Limitação de responsabilidade (disclaimer): As entidades referidas nas notícias dos media que comento não são arguidas ou suspeitas do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Frentes de combate, controlo de danos e fuga

Agora que começou a mãe de todas as batalhas - aquela desencadeada pelo sistema corrupto para não abandonar o poder - é útil fazer uma espécie de Sitrep das frentes de combate. Merecem relevo especial a frente financeira e a frente judicial. Enquanto permanece a incógnita sobre as manifestações da Geração à Rasca, em 12-3-2011.

Na frente financeira, ocorreu o previsto cruzamento, no sentido ascendente, das curvas das taxas de juro das obrigações do Estado português dos prazos mais curtos com a curva das obrigações dos prazos mais longos (dez anos) - nesta manhã de 10-3-2011, a taxa de juro a cinco anos está em 7,67% contra 7,48% a dez anos -, bem como a asfixia da emissão de dívida em 9-3-2011 (quase 6% para a dívida a dois anos!...), que levou o próprio secretário de Estado do Tesouro, Costa Pina, a reconhecer, em 9-3-2011, que as taxas de juro da dívida portuguesa são insustentáveis a prazo («a prazo» pode querer dizer os dias seguintes...). Sócrates disse em Viseu, em 7-3-2011, que a vinda do FMI (isto é, a intervenção externa) constituiria uma perda de dignidade do País:
«Entre vir ou não vir o FMI, há um país que perderia prestígio, além de perder também a dignidade de se apresentar ao mundo como um país que consegue resolver os seus problemas.»

Parece que a perda de dignidade está à porta... Mas não é a perda de dignidade do País porque o Estado não é do primeiro-ministro, ainda que ele se considere o Sol: é a perda de dignidade do socratismo, um sistema degenerado de Governo cruel (anti-democrático), ruinoso e cobarde, que tem feito da força a sua imagem holográfica.

Porém, nos momentos em que a história acelera - e agora corre mais rápida do que os tácticos medrosos gostariam -, depressa se recua de trincheira em trincheira, largando terreno, e, na fuga, o objectivo de resistência passa para o mais primário instinto de sobrevivência. A actual circunstância socratina destes profetizados idos de Março é apenas a sobrevivência na fuga, já que se esvaneceram até os esquemas de controlo de danos. Assim, já não se trata de alcançar um mecanismo de socorro financeiro de emergência flexível para salvar a face dobrada, mas simplesmente de socorro financeiro, qualquer que seja modalidade, desde que permita o pagamento de salários, juros, pensões e subsídios, no próximo mês.

Na frente judicial, destaca-se a continuação da perseguição e redução das condições de investigação ao juiz Carlos Alexandre, que detém a instrução de processos sensíveis, como o Freeport, também denunciadas hoje, 10-3-2011, pelo presidente da Associação Sindical dos Magistrados Portugueses, dr. António Martins, que se indigna perante o que a Direcção-Geral da Administração da Justiça manda em contraponto com o que internamente faz, enquanto que o Dr. Júlio Castro Caldas, ex-colega de Governo de José Sócrates, governo que, aliás, o indicou para o lugar no Conselho Superior do Ministério Público,  foi indicado para relator do processo disciplinar instaurado por Pinto Monteiro aos procuradores do processo Freeport, Vítor Magalhães e Paes de Faria...

A frente judicial é mais crítica para o socratismo e é aí que procurará resistir mais, pois a frente financeira já é dada como perdida. Mas não demora a debandada.


* Este poste foi publicado também no Movimento para a Democracia Directa.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Socorrro financeiro em vez de «resgate financeiro»

Por que motivo quem não é apoiante do Governo se conforma com a tradução de «bail-out» pelo eufemismo de «resgate financeiro», em vez de «socorro financeiro»?... Não pressupõe o resgate a libertação de um refém? Mas o Governo português foi vítima de rapto ou, ao contrário, gastou o dinheiro do saque?...

sábado, 5 de março de 2011

Chavismo judiciário?...

Espero que o projecto do Governo, noticiado em Janeiro, de disfarçadamente prolongar o mandato do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Dr. Noronha Nascimento, para lá dos 70 anos, não seja apresentado na Assembleia da República. E que, se for, os partidos da oposição o rejeitem, tal como o projecto de prolongar o mandato do vice-procurador Gomes Dias - e, por aí, do Dr. Fernando Pinto Monteiro... Se não carecer de apresentação no Parlamento (ou o Parlamento o deixar seguir), o Presidente deve vetá-lo, pois não esquece, desconfia de oportunos actos de contrição. Noronha Nascimento e Pinto Monteiro: já fizeram o seu tempo no consulado socratino. Agora, é hora de outros protagonistas.

Não deve ser criada, nesta fase de austeridade do Estado, qualquer excepção ao regime de aposentação de funcionários públicos - o que, aliás, contrariaria a política do Governo!... - ainda mais quando possa alguém ser tentado a estabelecer relação entre este diploma e qualquer eventual decisão tomada em processos em que os governantes são parte mencionada, como o primeiro-ministro no caso Face Oculta. Mais: é inaceitável que seja consentido ao Governo socialista a possibilidade de condicionar a acção do próximo Governo, e do curso da própria justiça, com uma medida desta gravidade, à maneira de Hugo Chávez.

sexta-feira, 4 de março de 2011

A dívida falida

Recomendo a leitura e análise atentas do artigo «Portugal, a broken debt market», de Joseph Cotterill, em 2-3-2011, no FT/Alphaville. Copio dois gráficos (elaborados por Laurent Frasolet do Barclays Capital) - Fluxos mensais da dívida do Estado português, Jan.2009-Out.2010 e Obrigações do Tesouro e Bilhetes do Tesouro portugueses detidos por investidores estrangeiros, 2005-2011 - e traduzo um excerto desse artigo:





«Os gráficos mostram que os investidores portugueses compraram o equivalente à emissão líquida de dívida em 2010 (os bancos 10 mil milhões de euros, seguradoras e similares cerca de 5 mil milhões - estes dois conjuntos tinham muito poucos títulos destes antes). Excluindo o BCE, os investidores estrangeiros venderam 20 mil milhões de euros no ano passado [2010], passando da quase totalidade da dívida do Governo português em 2009 para cerca de metade em 2010.
O BCE comprou quase 19 mil milhões de euros em 2010, de acordo com o cálculo do Barclays Capital, que está em linha com outras estimativas que nós fizemos antes. A emissão bruta de obrigações do Estado português totalizou 21,7 mil milhões de euros em 2010. (...)
Podemos concluir que a dívida portuguesa sobrevive, enquanto o BCE mantiver o seu programa de compra de obrigações [soberanas], o que não durará - mas isso, agora, já é bastante óbvio.» (Tradução minha)

Joseph Cotterill conclui que o socorro financeiro não resolve o problema do País porque a questão fundamental é a falta de competitividade da economia portuguesa no longo-prazo. Ou seja, sem o aumento sustentado de competitividade da economia - fazer melhores produtos e serviços e de modo mais eficiente do que os concorrentes internacionais (isto é, a custo mais baixo) - não é possivel amortizar a dívida externa e o Estado terá de admitir a bancarrota (moratória, reescalonamento e pagamento parcial) a que se segue a recusa dos investidores à concessão de novos créditos. E é por causa desta conclusão da falta de competitividade da economia - que o socratismo não resolveu -, uma conclusão que é dominante nas instituições internacionais que nos podem emprestar dinheiro, como a União Europeia e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que, além da contrapartida de um pacote de austeridade, o Governo vai ter de se comprometer com um programa duríssimo de reformas económicas que diminuirão o bem estar do povo no curto prazo.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Face desvendada


A chamada e reprimenda do Presidente da República ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Dr. Noronha Nascimento, em 1-3-2011, constitui a evidência de que na justiça portuguesa não vale tudo e que a perseguição e ameaça da magistratura independente do poder político, como é caso do notabilíssimo juiz Dr. Carlos Alexandre, e da comunicação social, são inadmissíveis num Estado de direito democrático, por maior que seja a importância dos envolvidos em processos de peripécias polémicas. Copio a notícia do CM, de 2-3-2011:

«'Face Oculta'
Cavaco manda calar Noronha
Por: António Ribeiro Ferreira / J.F.

Presidente da República ficou altamente incomodado com as ameaças feitas ao juiz Carlos Alexandre por não destruir as escutas de José Sócrates.

Foi uma audiência dura ontem à tarde em Belém. Tão dura que Noronha Nascimento foi obrigado, à saída, a dizer aos jornalistas que o seu despacho da semana passada sobre as escutas de Sócrates no processo ‘Face Oculta’ foi mal interpretado. O Presidente da República não deixou margem para dúvidas. O comportamento do presidente do Supremo Tribunal de Justiça foi altamente condenável, e neste momento conturbado da Justiça e do País o melhor é os seus responsáveis ficarem calados.
Cavaco Silva ficou particularmente incomodado com as ameaças ao juiz Carlos Alexandre, aos assistentes do processo e até a penalistas, como Costa Andrade, que têm contestado a posição de Noronha Nascimento de ordenar a destruição de todas as escutas envolvendo o primeiro-ministro.
O presidente do Supremo Tribunal de Justiça negou no final da audiência com Cavaco Silva qualquer intenção de proceder disciplinarmente contra o juiz do Tribunal Central de Acção Penal. Mas no texto divulgado na semana passada Noronha Nascimento é muito claro na ameaça de processo disciplinar ao juiz Carlos Alexandre, responsável pela instrução do caso ‘Face Oculta’, que não obedeceu à sua ordem para destruir as escutas entre Sócrates e Armando Vara: "Há hierarquia entre tribunais porque é sobre ela que assenta o sistema de recursos, daí que o não cumprimento por tribunal inferior da decisão proferida em recurso dê origem a procedimento disciplinar do juiz que não cumpre."»

Sente-se a mudança de poder e a postura do Dr. Noronha Nascimento mudou radicalmente face à arrogância e hostilidade apresentada à saída da audiência de 17-11-2009, no próprio palácio de Belém. O que interessa a face, se podemos ficar sem dentes?... Ou como escreveu Flaubert: «on ne sent pas ses engelures quand on a mal aux dents»...

Tendo em conta este episódio muito significativo, diminui o espaço de manobra habitual do procurador-geral da República, Dr. Fernando Pinto Monteiro, que se arrisca a chamada e reprimenda semelhante, se não arrepiar caminho da proximidade ao primeiro ministro para o cumprimento da separação efectiva e clara do poder executivo. Nomeadamente nos casos mais polémicos, como o processo Face Oculta, em que a justiça tem de demonstrar a sua independência em vez de expor a sua fragilidade e subserviência. É certo que, tendo nascido em 5 de Abril de 1942, faltam treze meses para que o limite de idade o obrigue a deixar o cargo. Mas esse tempo é incompatível com a necessidade de autonomia do Ministério Público português e, a mesmo que a sua postura mudasse radicalmente, não se antevê como possa resistir ao enterro do socratinismo. O apito está do lado do procurador-geral, mas silva menos, e seria útil que não terminasse o jogo, no tapetão, envolto em mais lances polémicos, agora que se esfumou a hipótese de prolongamento e o campeonato já está decidido.

O meu professor Adriano Moreira insistia sempre que o poder não é uma coisa, mas uma relação e, agora, a relação começou a inverter-se. Por isso, em Portugal, neste momento, as posições (o cargo) reorientam-se para o lado forte da relação e os seus detentores temporários abandonam o lado moribundo. Ainda que a perspectiva do Presidente se não tenha alterado, é maior o vigor que agora usa e menor a força das entidades sistémicas com que lida.

A justiça é, portanto, uma batalha para a democracia ganhar. A justiça é a batalha decisiva para a reforma política fundamental de que o País carece: a reforma moral que há-de preceder as reformas política, financeira, económica e social. Quando mais independente e livre for a justiça, mais forte é a democracia, maior a confiança do povo em que o deve representar e mais tangível a esperança da pedagogia da prestação de contas e de responsabilização judicial dos dirigentes políticos infractores.


* Imagem picada daqui.

quarta-feira, 2 de março de 2011

O pedido de socorro financeiro e a preparação de novo plano de austeridade

A contenção da taxa de juro das obrigações do tesouro nacional nos últimos dias sugere que José Sócrates terá dito a Angela Merkel, na sexta-feira, 25-2-2011, que estava disposto a solicitar o socorro financeiro da União Europeia e, em troca, pedido o apoio político da chanceler alemã para que o Banco Central Europeu (BCE) lhe continuasse a travar a subida da taxa de juro até às cimeiras europeias de Março e fosse alcançado um esquema menos embaraçante para si de ajuda financeira ao Estado português.

O trabalho diplomático, directo e com o apoio de outros países, junto das agências de notação financeira parece ter conseguido a suspensão da avaliação negativa até às cimeiras europeias - veja-se a manutenção, hoje, do rating «A-» do Estado português pela Standard and Poor's (veja-se, para comparação, a notícia da Bloomberg), avisando a agência que pode descer a nota na próxima revisão até dois níveis. O Governo parecia estar previamente avisado disso, daí nova emissão de dívida, através de bilhetes de tesouro de curto-prazo, beneficiando da previsível descida ligeira da taxa de juro nos mercados financeiros.

Por coincidência prevista, neste 2 de Março de 2011, José Sócrates vai à reunião com Angela Merkel, para o qual esta o terá convocado no dia 25-2 (com Zapatero, Merkel foi a Madrid, a Sócrates chama-o a Berlim...) , acompanhados por Teixeira dos Santos e Wolfgang Schäuble, o que significa que o encontro se destina a preparar o plano de socorro financeiro ao Estado português, a modalidade, o montante e as condições do empréstimo e a supervisão da sua execução, bem como a contrapartida de novo plano de austeridade e de reformas económicas gravosas para o bem-estar do povo.  O Governo informa que o secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Pedro Lourtie, também vai porque é preciso dar a ideia de que José Sócrates, líder de um Estado com 2,14% da população da União Europeia, com 27 países (e cerca de 2,5% do capital do BCE, subscrito pelos dezassete países da Zona Euro), com a dívida que tem e carente como está, pudesse impor à Alemanha a alteração do modelo institucional europeu!...

Sócrates procura uma saída que lhe permita receber o grande empréstimo da União Europeia/FMI, sem que pareça que foi ele que o pediu!... Sócrates pretende que o FMI, que contribui com um terço dos 750 mil milhões de euros do Fundo Europeu de Estabilização Financeira, não participe na supervisão da execução orçamental e da utilização do empréstimo, para que os opositores não possam dizer que o «o FMI entrou em Portugal», como se, nestas condições, isso fosse possível e, sendo, fizesse alguma diferença... Isto é, Sócrates quer dar a entender que o Estado português receberá apoio financeiro para pagar juros, salários, pensões, subsídios e aos fornecedores, no quadro de um esquema europeu geral de protecção do euro, de reacção face a eventual nova crise petrolífera, de luta contra a especulação global, de tudo menos a sua incompetência na condução do País. Pouco adianta: o Governo Sócrates não cairá pela vergonha do pedido de socorro financeiro: sucumbirá à reacção popular e à diminuição da preferência dos eleitores, que serão aproveitadas pelas oposições, após o anúncio do próximo pacote de austeridade e de reformas económicas gravosas a que será forçado para aceder ao empréstimo.

Pós-Texto (12:22 de 2-3-2011): Natal é quando Sócrates quiser
Já depois de ter publicado este poste, vi primeira página do CM, de hoje, 2-3-2011, e concluí que está certa a minha conjectura sobre a preparação de novo plano de austeridade em troca do socorro financeiro da União Europeia/FMI.


* Imagem do primeiro-ministro recortada daqui.

terça-feira, 1 de março de 2011

As rasuras do sistema


As rasuras nos telegramas diplomáticos (cables) entre a embaixada norte-americana em Portugal e o Departamento de Estado dos EUA, obtidos pela Wikileaks, que o Expresso, de 26-2-2011, começou a apresentar são a expressão da vergonha que se transformou a relação dos media com o Estado, e especialmente dos media portugueses com os governos Sócrates. A palavra que uso é mesmo «vergonha», pois não vi qualquer rasura na quantidade de telegramas da Wikilieaks publicados pelos media de outros países.

O Expresso anunciou em 24-2-2011 que iria publicar uma série de telegramas diplomáticos (entre os 722 cujos direitos terá comprado aos jornais Politiken e Aftenposten) entre a embaixada dos EUA em Lisboa e o Departamento de Estado norte-americano, vertidos pelo Wikileaks - não creio que se tenha de pagar para aceder aos telegramas que são de domínio comum, e não propriedade de qualquer meio que os tenha obtido, mas os milhares de pessoas e organizações que receberam o bolo total têm dificuldade em fatiar a informação. O obediente jornal de Francisco Pinto Balsemão, agora dirigido por Ricardo Eu-Sou Controlado Costa, disse que tinha facilitado ao Governo o material a publicar.

O jornal fez-se ao piso e o Governo chegou-se à frente. Quase nada nos telegramas afecta o Governo Sócrates, os socialistas, a corrupção, o sistema - e mesmo o que se publica sobre a FLAD é genérico e parece também poupar o bloco-centralista sistémico Rui Machete. Dir-se-á que Nuno Severiano Teixeira, é atingido, mas este terá caído em desgraça no PS e no círculo socratino, não sendo as revelações sobre a sua personalidade prejudiciais ao seu sucessor Augusto Santos Silva...

As rasuras do Expresso são selectivas nos alvos: enquanto o nível político de topo é deixado de pé e omitido, o nível militar é arrasado e nomeado.

É inadmissível para o sentido de Estado indispensável de um ministro da Defesa de Portugal - mesmo que nem sequer tenha ido à tropa e seja um (pós)troskista, ex-militante da União Operária Revolucionária e da Liga Comunista Internacionalista, apoiante de Otelo em 1976 - que o resultado dos contactos entre o Expresso, de Ricardo Costa, e «o ministério de Augusto Santos Silva» seja as Forças Armadas da Nação atingidas de forma tão dura como foram na parte visível dos telegramas publicados. Por exemplo, o Chefe de Estado-Maior da Força Aérea, general Luís Araújo (actual Chefe de Estado Maior General das Forças Armadas - CEMGFA), é classificado  como «um dinossauro», num telegrama do embaixador norte-americano em Lisboa, Thomas Stephenson, de 5 de Março de 2009 (p. 3). Esse telegrama danifica fortemente a imagem, objectivos e modo de funcionamento das Forças Armadas portuguesas, mas não tem sequer uma rasura (tal como o de 12-10-2006, sobre a compra de fragatas ou ainda outro, de 20-2-2008, sobre a acção de lóbi da embaixada para a actualização pela Lockeed dos aviões portugueses de patrulha oceânica P-3C, num contrato de 135 milhões de dólares).

Já o telegrama de 6-3-2009 com um apontamento de conversa do embaixador Stephenson com o ministro Severiano Teixeira e o secretário de Estado Mira Gomes contém, a seguir a um parágrafo com indiscrições do ministro e do secretário de Estado sobre o relacionamento passado entre órgãos de soberania, rasuras muito extensas. Essas rasuras podem tapar outras indiscrições delicadas do Governo sobre o Presidente da República Cavaco Silva, tendo em conta que o tema principal da reunião pode ter sido o fornecimento de militares da GNR para o Afeganistão, empenhamento de tropas a que alegadamente o Presidente se opunha por, segundo o embaixador (sete meses antes) não ter sido convidado por Bush para a Casa Branca, em 2007 (telegrama do embaixador Stephenson, de 29-8-2008, publicado por El País, em 12-12-2010). O parágrafo final do telegrama é uma pista para esta interpretação, pois relata a referência do secretário de Estado Mira Gomes a uma «atenção de alto nível de Washington» que seria «necessária para encorajar contributos adicionais» de forças portuguesas para a missão militar no Afeganistão (tradução minha). E a interpretação adequa-se ao extremo cuidado que o Governo passou a ter com o Presidente, nesta fase moribunda do socratismo português. Seria útil outros media portugueses acederem ao original e publicar o texto integral, comparando as partes omitidas.

O telegrama de 15-2-2008 de Stephenson sobre a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), tem dois parágrafos rasurados, o primeiro deles sobre o Boris Report, de 1996, e o segundo, provavelmente, atendendo à sequência do texto, com exemplo sumarento de apoios extravagantes e absurdos da fundação a entidades que o Expresso, após os contactos com o Governo, quis omitir.  A FLAD é outra das entidades herméticas que o próximo Governo de Portugal deve mandar investigar pelo Ministério Público, atentas as referências gravíssimas que têm sido feitas sobre a sua gestão e o uso de recursos que são públicos.


Actualização: este poste foi emendado às 20:39 de 2-3-2011.

A necessidade de moral do Estado


É impossível que as diplomacias dos países democráticos não tivessem  informação sobre o reinado de terror de Kadafy na Líbia, uma espécie de Calígula dos nossos dias. Porém, o velho cinismo da chamada política realista levou países com supostos governos decentes a colaborar com o regime líbio, para efectuar negócios e explorarem as suas riquezas. Portugal foi, no consulado do imperador Sócrates, um expoente dessa promiscuidade nas relações internacionais que levou à aliança com regimes anti-democráticos como os da Líbia, do Irão e da Venezuela.

A revolução da cidadania mundial, de que a Wikileaks é o fenómeno mais notório, vai provocar mudança na forma de fazer política. A imoralidade do Estado pactuar com tiranias e corrupção não desaparecerá - mas terá de ser mais limitada, esquiva e camuflada. O povo já não tolera facilmente a mentira.


* Imagem picada daqui.