Nesta quadra pascal, em que passamos da dor da Paixão e da Morte à alegria da Ressurreição, transcrevo abaixo o «Sermão do Encontro», do Padre Jorge Alves Barbosa, pronunciado em Viana do Castelo, em 10-4-2011, a quem agradeço o envio deste notável texto, na forma e na actualidade do conteúdo.
«SERMÃO DO ENCONTRO
Padre Jorge Alves Barbosa
Viana do Castelo, 10-4-2011
1. A VIA-SACRA DE TODOS OS DIAS…
Numa Quaresma que exibe contornos sociais mais que religiosos e na via-sacra que vamos seguindo em cada dia, pelas estradas, ruas e praças em que nos cruzamos; neste espaço onde partilhamos aventuras e desencantos, revivendo momentos em que lamentamos a nossa pouca sorte, ou até deixamos transparecer algumas dúvidas sobre a justiça e a bondade de Deus; exibindo já no rosto as marcas da desilusão e da revolta face a promessas incumpridas e ideais traídos… eis que acabamos por nos cruzar com Jesus, sempre carregando a sua cruz, rumo a um Calvário novamente erguido em cada ano…
Jesus está aqui… “no meio de nós”, como costumamos dizer nas celebrações, para nos assegurar que continua a percorrer estes caminhos, anónimo talvez, ignorado muitas vezes, mas sempre disponível a partilhar as nossas dores, pronto para escutar em silêncio os nossos desabafos e, quem sabe, para aguentar complacente os impropérios do nosso desespero e frustração.
Jesus recebe a Cruz: A imagem de Cristo, vergado ao peso da sua Cruz, insiste em mostrar-nos uma face erguida, uma cabeça levantada, um olhar que se cruza com o nosso olhar, a serenidade de quem tem a consciência de caminhar para a morte, mas confiante por saber que cumpre a vontade do Pai; com Ele, Jesus leva o peso da iniquidade e da injustiça humanas, aceitando carregar o insuportável sofrimento dos inocentes, mais agravado agora pela cegueira de uns, pela ambição de outros, pelo descaramento daqueles que não têm vergonha de atirar sempre para cima dos mais fracos o peso dos seus erros e as consequências já indisfarçáveis das suas mentiras.
Na Cruz de Cristo pesam ainda a insensibilidade e a indiferença humanas para com o Deus “que nos vai segurando pela mão” como crianças indefesas, mas que recebe como recompensa a arrogância de quem, em nome de uma vida adulta e esclarecida, O descarta para o sótão das velharias e das inutilidades; nesta cruz pesa também o desprezo pelos outros homens, quando a sua existência é considerada inútil, quando a sua imagem envergonha, quando a sua presença é incómoda. Nesta cruz de Cristo pesa o medo de um próximo transformado em perigoso concorrente, pesa a desconfiança perante as instituições públicas transformadas em ameaça aos nossos direitos, pesa a falta de crédito nas pessoas, quando as sentimos preocupadas apenas com a estabilidade pessoal, a carreira, o estatuto social.
É desta forma que a cena banal da execução de um “blasfemo” para judeus e “subversivo” para romanos, se transforma no espelho da realidade humana, confrontada com os seus erros e defeitos; o Senhor dos Passos ergue-se aqui, diante de nós, também em juízo sobre os nossos propósitos, em avaliação dos nossos méritos em desafio à nossa conversão. Ele permite-nos contemplar, aqui, a imagem da via-sacra de cada um de nós; contemplamo-lo não como um qualquer estranho, mas como aquele que “carregou sobre si as nossas dores”, na esperança ou mesmo na convicção de que “pelas suas chagas seremos curados”, e caminha agora serenamente até ao Calvário.
O drama da caminhada segura de Jesus é subitamente interrompido pela entrada em cena de uma personagem inesperada. Ela não escutara a sentença do Sinédrio judaico… não estivera no Pretório de Pilatos… não aquecera as mãos na fogueira das negações de Pedro… muito menos integrara as corruptas testemunhas de acusação… Ninguém a esperaria ali e talvez mesmo algum dos discípulos – depois de terem fugido – tenha feito os possíveis para que ela de nada soubesse. Os rostos curiosos de alguns, os olhares envergonhados dos que acusaram Jesus, o pânico mal disfarçado dos que se sentem agora culpados desta tragédia são surpreendidos por uma incómoda chegada… Está ali… a sua Mãe!...
Maria, expressão da coragem e sensibilidade feminina perante os dramas humanos, “vem ao encontro” de Jesus. No silêncio deste momento, há um cruzar de olhos que se transforma em Evangelho de vida, em Evangelho de esperança… Perante este espectáculo, lá no fundo do coração materno de Maria, ergue-se de novo a pergunta da anunciação: “Como pode ser isso?” Estalam novamente nos seus ouvidos as palavras fatídicas de Simeão: “ele será sinal de contradição”. Como ela compreende agora o sentido daquele inesperado vaticínio: “uma espada trespassará a tua alma”!...
Mas é neste momento que Maria experimenta de novo a força da palavra dada ao seu Senhor; ela identifica-se mais uma vez com a vontade de Deus, vem oferecer-se, de alma e coração… para caminhar, para partilhar a sorte… para sofrer a Paixão, sem flagelação, sem espinhos, cravos ou lança… mas de coração despedaçado.
b) Encontro:
Ao contrário de nós que nos cruzámos acidentalmente com Jesus, Maria vem partilhar com ele o caminho do Calvário, como alguém que o procurou, que o quer acompanhar; Maria não vem aqui para chorar como as mulheres de Jerusalém, não vem exibir a saudade e o sentimento de perda que ferem o coração de Maria Madalena e das outras mulheres que acompanham corajosamente o Mestre; ela não vem sequer enxugar as lágrimas de Jesus, como Verónica… ela não fará perguntas nem colocará objecções como Simão de Cirene. Maria vem para seguir Jesus, num silêncio total, para partilhar, no sofrimento de Seu Filho, a totalidade da Paixão que agora é também sua.
Neste silêncio e no olhar de Maria ressoa, com toda a sua força de significado, um renovado e incondicional “sim” ao plano de Deus, partilhado com seu Filho Jesus: a dúvida da Anunciação, “como pode ser isso”, explica-se agora naquele grito interior de Jesus no Jardim das Oliveiras: “Pai, se possível passe de mim este cálice!...”; aquele “faça-se em mim segundo a tua palavra”, confiado ao Anjo Gabriel une-se agora ao “faça-se a tua vontade e não a minha”, vivido na solidão e no abandono total do Pai com que Jesus se confronta neste momento dramático da Paixão. Maria aceitara ser a Mãe do Filho de Deus aderindo desde início a um Evangelho de sofrimento; ela segue para o Calvário, ignorando o seu novo destino de mãe de todos os homens, mas de coração aberto às surpresas da vontade de Deus, só para que estes novos filhos sintam aliviados, pela ternura, da Mãe os sofrimentos e dores de cada dia. Mais do que Senhora das Dores… Maria é, para nós, a Mãe da Consolação… a Mãe da Esperança…
2. …A MENSAGEM DE UM “ENCONTRO”:
a) No aparente silêncio deste drama continuamente repetido, conseguimos sentir o peso das lágrimas contidas, o rumor dos silêncios forçados, a palavra engasgada, a dor disfarçada de tantos que, hoje e aqui, encontram, em Maria em Jesus, a sua própria voz: Maria é aqui a porta-voz de tantas jovens que vêem espezinhada e escarnecida a sua maternidade em nome dos índices de produtividade das empresas, de tantas mães que vêem condicionada a fecundidade do seu amor materno pelos constrangimentos financeiros, pelos limites dos orçamentos familiares, transformadas nas primeiras vítimas da cegueira dos cortes na despesa pública; em Maria vislumbramos também o ar interrogativo daquelas mães que não encontram explicação – porque todos fogem a dá-la – para o desaparecimento, para a exploração sexual, para a prisão, e até a morte injustificada de seus filhos, vitimas de um mundo que tudo submete aos seus caprichos e ocultas intenções. Em Maria vemos também a imagem da Mulher, a mulher no autêntico sentido da palavra, essa mulher que não abdica da sua condição, que não trai a sua dignidade, que resiste estoicamente a trocá-las por uma qualquer carreira, qualquer estatuto, qualquer bandeira política ou ideológica…
b) Em Jesus, o Senhor dos Passos, identificamos nitidamente as vítimas de uma justiça que não funciona ou funciona mal, os que vêem condicionada a sua liberdade sem lhes explicarem porquê, os que se confrontam com um sistema judicial que também hoje liberta os criminosos e transforma as vítimas em culpados para contentar multidões… O Senhor dos Passos coloca diante de todos o efeito da escandalosa libertação de Barrabás, um salteador, escolhido e arrebatado para a liberdade, por troca com Jesus, por força e habilidade dos seus correlegionários infiltrados no seio duma multidão ingénua e impreparada que grita a plenos pulmões, sem saber porquê: “solta-nos Barrabás!...”.
E assim vamos assistindo, incrédulos e impotentes, ao ilibar de novos Barrabás, não só trocados por vítimas abandonadas e indefesas, mas ainda premiados como chorudas indemnizações; esses, sim, os verdadeiros criminosos, salteadores duma sociedade dita moderna e democrática, que conquistam a liberdade acicatando multidões anónimas e manipuladas, justificando os seus crimes com legislação feita a gosto… protegidos por amedrontados Poncios Pilatos… gozando da protecção e conivência dos Césares a quem sustentam o poder… camuflados nos esquemas indecifráveis e incontornáveis da corrupção, acarinhados por uma comunicação social que se alimenta da suspeita e da insídia, assumindo o papel das testemunhas que foram subornadas para acusar Jesus.
c) Vamos assistindo, aqui e além, ao encenar do drama da Paixão… somos até capazes de nos deixar comover perante a figura trágica de um Cristo que, pela inveja dos fariseus, pelo servilismo dos romanos, ou pela ignorância e covardia dos próprios discípulos, vai a caminho da morte na cruz. Mas, na verdadeira Via-Sacra da vida, não temos problemas em integrar a multidão dos coniventes com a situação; desculpamos os erros em nome de benefícios que não merecemos; perdoamos a corrupção em nome de títulos que festejamos, arranjamos justificações para não nos comprometermos com a mudança; abdicamos dos direitos cívicos por cobardia, abdicamos da transparência e da verdade por medo, deixamo-nos envolver pelo indiferentismo religioso por respeito humano, olhamos para o lado face aos ataques insidiosos feitos à Igreja e àqueles que a servem dizendo como Pedro, “não conheço essa gente”; tudo a coberto de um hipócrita direito à indignação e de uma mórbida curiosidade sobre a vida dos outros…
Vai-se multiplicando por toda a parte o novo farisaísmo dos que se arrogam em defensores da legalidade, alargam-se a dimensões internacionais os Pretórios de Pilatos, enfurece-se o grito de uma acusação globalizada: “Crucifica-o!”, porque nos incomoda… Somos até capazes de encenar a Paixão do Senhor, transformando-a em apelativo cartaz turístico, mas vivemos na contradição de um país que reduz a Páscoa a oportunidade de férias em destinos exóticos, e deixa as celebrações da Paixão e Morte do Senhor para aqueles que passam fome, tendo ainda o descaramento de lhes estenderem hipocritamente o vinagre da indiferença e o fel do desprezo.
É esta a verdadeira Paixão de Cristo enquadrada numa Quaresma que também subverteu os seus princípios: o jejum transformou-se em austeridade, a abstinência em constrangimento financeiro, a oração em grito de desespero. Tanta coisa que se recusa em nome da liberdade e se aguenta por obrigação; o que deixámos de fazer por amor estamos a fazê-lo por necessidade. Quantos procuram já um pouco de comida aí pelos caixotes do lixo… queira Deus que não encontrem por lá ainda algum crucifixo acabado de retirar de uma qualquer escola ou repartição… Esta Procissão do Senhor dos Passos, acompanhado de sua Mãe, é, aqui e agora, a mais dramática expressão do sentimento que conseguiu unir, num inesperado e surpreendente diálogo de gerações, as mães e os filhos de uma “geração à rasca”, que encheu há poucos dias as ruas e praças das nossas cidades.
3. CONCLUSÃO
A grande lição que precisamos de retirar deste Encontro dramático entre Jesus e Maria, a caminho do Calvário, é a de nos encontramos aqui – nós mesmos – com o exemplo de duas vontades unidas num único gesto redentor: Jesus que aceita seguir a vontade do Pai; Maria que vai “completando também na sua carne o que falta à Paixão de Cristo”. Aqui, a fé pode transformar o sofrimento em redenção… o Calvário em Tabor… a morte em vida… o “vale de lágrimas” em espaço de felicidade e de esperança.
Como cristãos, vivemos nesta Quaresma uma forte experiência de fé: acompanhando os passos de Cristo, acreditamos ser seguidores da Verdade, com maiúscula; reconhecemos que “a nossa glória está na Cruz; nela está a nossa vida e ressurreição; nela somos salvos e livres” como nos recorda São Paulo. Neste Cristo, carregando a sua Cruz, descobrimos a verdade sobre o Reino de Deus, um reino que, decididamente, não é deste mundo. Por isso, nós não temos, não podemos ter medo da verdade; por isso, não nos abstemos de exigir a verdade aos responsáveis; por isso, de cabeça levantada como Jesus, mesmo carregando o peso da Cruz, queremos dizer que não temos medo que quaisquer outros se arvorem em nossos juízes ou acusadores, lançando suspeitas ou ampliando calúnias… A certeza de encontrar o Reino da Verdade, da justiça e da paz, ajudar-nos-á, como sempre, a superar as injustiças, a enfrentar as ameaças e tribulações dos reinos deste mundo…
Depois deste “nosso encontro” com Cristo e com Maria – sim, porque este é o verdadeiro Encontro que celebramos aqui hoje – ganha mais sentido acolher o convite de Jesus para “retomarmos a nossa Cruz todos os dias”; acompanhando Jesus e Maria, nesta serena caminhada para o Calvário, aprenderemos a assumir as nossas dúvidas, a controlar os nossos medos, a superar os inevitáveis momentos de desespero, em que até, como Jesus, nos sentimos abandonados de Deus. Vamos resistir à tentação de rejeitar a nossa cruz, vamos pedir perdão pela fraqueza de a tentarmos trocar por outra mais leve e, quem sabe, por termos procurado até que outros a carregassem em vez de nós. Façamos nossas as palavras do poeta:
«Que reine para sempre a Cruz!Amen.
Erguei-a sobre todos os píncaros das serranias,
gravai-a em todas as árvores dos bosques,
hasteai-a sobre as rochas marítimas,
estampai-a nas muralhas das cidades,
exibi-a na fronte dos edifícios,
apertai-a no coração.
E depois,
que o género humano se prostre
e adore nela a Redenção que nos trouxe o Ungido de Deus.»
(ALEXANDRE HERCULANO, “A Cruz” )
Viana do Castelo, 10 de Abril de 2011
Jorge Alves Barbosa»
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