Sócrates e os RERT
Como foi noticiado, alegadamente José Sócrates terá repatriado da Suíça cerca de 23 milhões de euros para Portugal de uma conta secreta formalmente detida pelo seu amigo, e testa de ferro, Carlos Manuel Santos Silva, cujos rendimentos jamais justificariam aquele valor, para uma conta no Banco Espírito Santo, em Portugal, deste seu testa de ferro. Alegadamente, esse dinheiro seria sujo e, além disso, teria fugido ao pagamento dos impostos devidos em Portugal. Ao ser trazido para Portugal beneficiou do regimes extraordinário de regularização tributária (RERT I e RERT II) que o Governo que dirigia criou, para o limpar a baixo custo. Contudo, segundo o Observador, de 29-1-2015, no recurso da sua prisão preventiva, José Sócrates terá alegado que as evidências que o procurador Rosário Teixeira juntou ao processo, para justificar os fortes indícios da prática dos crimes, são «provas proibidas».
No Sol, de 22-11-2014, «Sócrates: fortuna regularizada nos RERT», Felícia Cabrita conta:
«Em 2010, enquanto os cofres do país se encaminhavam para o colapso, os de Sócrates não: tinha uma almofada financeira de 20 milhões de euros no banco suíço UBS, em nome de uma offshore titulada por Santos Silva, e decidiu então trazer o dinheiro para Portugal.No Expresso, de 24-11-2014, a jornalista Ana Sofia Santos explica os RERTs:
Para isso, o seu governo criou o segundo Regime Extraordinário de Regularização Tributária (RERT II), que permitiu a regularização fiscal de verbas depositadas no exterior até finais de 2009, mediante o simples pagamento de um imposto de 5% sobre o total desse património e desde que o titular o colocasse em Portugal. Carlos Santos Silva foi um dos aderentes ao RERT e o dinheiro foi transferido da UBS para o BES, em Portugal.
Deste modo, em vez de ter de pagar ao Estado um imposto que em condições normais é de quase 50% (10 milhões de euros), Sócrates regularizou a situação por apenas um milhão. Além disso, como estava previsto no RERT, ficou desonerado de qualquer outra responsabilidade tributária e, melhor, não ficou sujeito a ser indiciado por qualquer crime fiscal – o que aconteceria forçosamente se, em vez de utilizar um ‘testa-de-ferro’ para se apresentar perante o Banco de Portugal, tivesse dado o rosto por aquele capital, sendo neste caso obrigado a declarar a proveniência da fortuna.
Mas, segundo os investigadores, esta não foi a primeira vez que José Sócrates recorreu a este expediente. Já no primeiro mandato, logo em 2005, saiu o RERT I, ao qual o então primeiro-ministro aderiu de imediato para colocar em Portugal meio milhão de euros, que já nessa altura tinha numa offshore, também em nome de Santos Silva.»
«A portaria que regulamentou o primeiro perdão fiscal foi ultimada no verão de 2005 e a medida entrou em vigor nesse mesmo ano. Permitiu 'legalizar' a situação de todos os capitais que até 31 de dezembro de 2004 estivessem fora do território nacional e por declarar, pagando um imposto de 2,5% (caso o capital fosse reinvestido em dívida pública) ou de 5%.
Nos RERT todo o processo é gerido pelo Banco de Portugal e o fisco não tem acesso às declarações entregues pelos contribuintes que aderem ao regime. Em causa estão depósitos bancários, ações, seguros de vida, fundos de investimento e outro tipo de valores mobiliários, mantidos à margem do fisco português.
A partir do momento que os capitais estão regularizados extinguem-se todas as obrigações tributárias exigíveis por estes valores, bem como o perdão das infrações e de crimes fiscais. A identidade de quem adere a estes mecanismos também não é revelada.»
Assim sendo, alegadamente, Sócrates terá beneficiado do RERT I (em 2005) e do RERT II (em 2010). Deste modo, teriam sido lavados, pelo próprio Estado, mediante uma taxa irrisória de 2,5%, através de um diploma legal aprovado pelo seu primeiro governo, cerca de um milhão de euros sujos; e novamente, em 2010, mediante nova portaria do seu segundo Governo, com uma taxa de 5% terá lavado mais cerca de 20 milhões de euros sujos depositados na Suíça em conta titulada pelo seu fiel amigo Carlos Manuel Santos Silva. Ou seja, de acordo com o que Felícia Cabrita escreve, alegadamente, e a crer nos valores indicados, como a taxa do imposto devido ao Estado português para aquelas elevadas quantias seriam de 50%, o primeiro-ministro Sócrates terá beneficiado com os seus RERTs, aproximadamente:
- em 2005, com o RERT I (2,5% de taxa), cerca de 475 mil euros (500 mil euros devidos - 25.000 euros pagos);
- em 2010, com o RERT II (5% de taxa), cerca de 9 milhões de euros (10 milhões devidos - 1 milhão de euros pago).
Swiss Leaks e Portugal
A celeuma da evasão fiscal foi recentemente aumentada com novas revelações do escândalo Swiss Leaks, com mais detalhes revelados em fevereiro de 2015 pelo ICIJ, sobre os dados fornecidos às autoridades francesas em 2008, por um funcionário do HSBC de Genéve, Hervé Falciani, e que foram passados em 2010 pela ministra das Finanças Christine Lagarde aos governos de países envolvidos, nomeadamente a Grécia. Não é conhecido se a lista Lagarde (ou Falciani), com os nomes de evasores fiscais, os seus montantes e nacionalidades, foi passada ao Governo Sócrates II (de que era ministro das Finanças, Teixeira dos Santos). Tratei do caso aqui neste blogue nos postes: «A lista Falciani portuguesa», de 23-12-2012; e «O que foi em Portugal da lista Lagarde?», de 14-1-2013.
O ICIJ calculou, a partir da lista de depositantes a que teve acesso, que portugueses com grandes depósitos no HSBC Genéve, seriam: 611 clientes, com 778 contas bancárias, e um montante total de 969 milhões de dólares (865 milhões de euros ao câmbio atual). O assunto tem passado nos média como um fait-divers sobre a identidade dos depositantes no HSBC de Genéve, desde a contabilista de palha de uma financeira luxemburguesa, a discretos comerciantes de ouro, magnates e banqueiros, com desmentidos descarados até da existência desses depósitos, quanto mais de qualquer ilegalidade ou ilegalidade!...
Ao contrário do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte, em Portugal, o assunto não parece ter interessado o Parlamento e cotejar a relação dos beneficiários com os decisores desse perdão fiscal e penal, em 2005 (2,5%) e 2010 (5%) - e janeiro de 2012 com o RERT III (7,5%) e apurar a responsabilidade política. É melhor, todavia, que seja a justiça a investigar, dentro das baias que a lei, mesmo armadilhada, concede, a eventual responsabilidade criminal dos decisores e dos beneficiários.
Não está sequer em causa a diferença entre a taxa de 5% que, alegadamente, Sócrates terá pago para lavar o pocket money de cerca de 20 milhões que terá trazido a Portugal em 2010, e a taxa de 10% para cima cobrada pelas autoridades britânicas, em 2010, aos contribuintes que tinham evadido as suas obrigações fiscais através de depósitos no HSBC suíço, não declarados nos seus países. Uma diferença de 1 milhão de euros... Ou verificar as taxas cobradas por outros países da União Europeia e no exterior (mencionados na investigação do ICIJ) por cidadãos abastados, que fugiram ao pagamento dos impostos devidos.
Factos e documentos sobre Sócrates e os RERTs
É decisivo determinar o nexo de causalidade entre a decisão dos Governos do primeiro-ministro Sócrates, de alegadamente amnistiar preventivamente eventuais crimes seus através de uma espécie de bênção estatal do dinheiro sujo e isentar-se ao pagamento devido dos impostos ao Estado em troca de uma minúscula percentagem: 2,5%, no ano de 2005 (RERT I); e 5%, no ano de 2010 (RERT II) - em vez dos 50% que seriam cobrados para rendimentos elevados (1 milhão de euros e 20 milhões de euros).
A serem verdade os factos relatados na imprensa, a responsabilidade de Sócrates parece objetiva na relação do RERT I (de 2005) e no RERT II (de 2010) com benefício fiscal e imunidade penal para si mesmo.
O RERT I. O primeiro-ministro José Sócrates assinou, ele próprio, a proposta de lei de alteração do Orçamento de Estado para 2005 (Proposta de Lei n.º 193/2005, vista e aprovada em Conselho de Ministros em 23 de junho de 2005 - conferir página 38), que criava, no seu art.º 5.º, o Regime Excecional de Regularização Tributária de elementos patrimoniais que não se encontrassem no território português em 31 de Dezembro de 2004 (chamado RERT I). Em 25 de julho de 2005, o primeiro-ministro José Sócrates referendou a Lei n.º 39-A/2005, de 29 de julho, a primeira alteração à Lei do Orçamento de Estado para 2005 (Lei n.º 55-B/2004, de 30 de Dezembro) - ver página 4446-(12) do Diário da República-I Série, n.º 145.º, de 29 de julho de 2005. O modelo de declaração de regularização tributária do RERT I e as suas instruções de preenchimento foram depois fixados na Portaria n.º 651/2005, de 12 de agosto do ministro de Estado e das Finanças (Fernando Teixeira dos Santos que havia substituído Luís Campos e Cunha em 21-7-2005).
O RERT II. O primeiro-ministro José Sócrates assinou pessoalmente a proposta de lei do Orçamento de Estado para 2010 (Proposta de Lei n.º 9/XI/1.ª), vista e aprovada em Conselho de Ministros em 25 de janeiro de 2010 - ver página 192), que criava, no seu art.º 131.º, o chamado RERT II (Regime Excecional de Regularização Tributária de elementos patrimoniais colocados no exterior). E em 23 de abril de 2010, José Sócrates, enquanto primeiro-ministro, referendou a Lei de Orçamento de Estado (Lei n.º 3-B/2010, de 28 de Abril - ver página 136). O modelo de declaração de regularização tributária do RERT I e suas instruções de preenchimento foram depois definidos pela Portaria n.º 260/2010, de 10 de maio, assinada pelo ministro de Estado e das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos.
Factos, factos, factos. Nada mais é preciso para desfazer o castelo de cartas marcadas pela batota e descobrir a sujidade do dinheiro de bolso.
Falta o resto. Olho vivo e pé ligeiro (não tarda o equinócio de outono). Conhecidos os burros de carga e identificado o almocreve, é um instante até se apanharem as provas nos alforges. Os camelos ficam para depois. Força e audácia. Já!
Limitação de responsabilidade (disclaimer): José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, arguido indiciado, em 24-11-2014, pelos crimes de corrupção ativa por titular de cargo político, de corrupção ativa, de corrupção passiva para acto ilícito, de corrupção passiva para acto lícito, de branqueamento de capitais; fraude fiscal qualificada e de fraude fiscal (SIC, 26-11-2014), recluso detido preventivamente no Estabelecimento Prisional de Évora sob o nº 44, goza do direito constitucional à presunção de inocência até ao trânsito em julgado de eventual sentença condenatória. O mesmo gozo da presunção de inocência se aplica a Carlos Manuel Santos Silva.
As demais entidades referidas neste poste, referidas nas notícias dos média, que comento, não são arguidas ou suspeitas do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade.