terça-feira, 28 de janeiro de 2014

A praxe académica: abuso e equilíbrio

«Porque esta casa é uma casa... de trabalho!» - berrava, com ar grave, um professor sessentão, de cabelo grisalho e bigode farto, de casaco e gravata, ladeado de outros docentes, sentados ao longo da comprida secretária da Sala Magna do velho ISCSP, no palácio Burnay, em Lisboa. A sala cheia de três centenas de alunos, quase vinha abaixo de tanto riso, apupos, assobios, bocas e pateadas, de veteranos. A aula era ainda despudoradamente interrompida pela entrada na cena de um contínuo cabeludo e de bata, o senhor Martins (o Jojó...). Vencido pela barulheira purgatórica, depois da arenga disciplinar, o professor abriu um período de perguntas e respostas. Um aluno queixou-se da avaliação do ano transato e perguntou-lhe pela possibilidade de solicitar revisão de provas, no ano que começava: o professor respondeu-lhe, que não percebia o que era isso de «revisão de provas», e repetiu o seu desconhecimento, mesmo depois de o aluno explicar em que consistia... Aparvalhado, como qualquer caloiro, olhando circunspecto tamanha insurreição, procurava noutros rostos tão incrédulos quanto o meu, um sinal de tranquilidade, um beliscão racional de que não tinha alunado, nesse início do outono de 1983, numa balbúrdia de continuidade do PREC. Mas o delírio continuou por mais uma hora. Até que saíu a corte praxística e, na aula seguinte, já a sério, entrou «o Roboredo» (como era conhecido Fernando Seara), para ministrar Princípios Gerais de Direito e avisar os caloiros da sua fama terrível, discutida - dizia ele -, na Flor da Junqueira e no Indelével do Marquês. Depois do logro anarquista, a normalidade pós-revolucionária.

Foi assim a minha primeira aula no ISCSP e, enquanto aluno, o meu contacto breve com a praxe académica. Em ano intermédio, ainda se intrujaram os caloiros/as [escrevo com «linguagem inclusiva» (sic) em vez de pôr «o género feminino entre parênteses», para não ofender o trotskismo do Público, de Bárbara Reis e Cláudia Azevedo!...] com um pretenso rastreio inicial, num gabinete com radiografias penduradas em caixa de luz e o Heitor, de bata branca nas consultas, mas não participei nessa atividade de socialização. No último ano, na bênção das pastas, não fui de batina, quanto mais capa, entendendo que não fazia sentido pedir roupa emprestada para o cumprimento de uma tradição que efetivamente não tinha havido.

Depois da alma mater, andei por outras. E mesmo na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra não senti, numa pós-graduação que ali cursei, que fizesse parte da tradição. Ainda novo, tinham, todavia, passado por mim as neves de outrora, sem que jamais as tivesse vivido. Coisas desse tempo de cinzas: nem o braseiro da revolução, nem o ferro da tradição.

Aliás, a tradição académica era então censurada como resquício fascista, numa época em que o politicamente correto da academia era o tardotrotskismo do MATA (Movimento AntiTradição Académica) e o experimentalismo radical da Pornex (a primeira feira de pornografia em Portugal), em 1984, no quartel da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

Depois dos tempos acima descritos, vieram os anos 90, em que o traje académico foi recuperado para lá da Universidade de Coimbra e reinventado, num design artificial semelhante ao do SNI sobre o vestuário (com coulottes!...) do folclore português. A praxe restaurada na Universidade de Coimbra foi desvirtuada noutras instituições de ensino superior públicas e depois nas privadas. Em várias das instituições privadas, por dependência financeira dos alunos, a praxe, paradoxalmente, ainda se tornou mais severa, como no caso do Instituto Piaget, em Macedo de Cavaleiros, em 2002-2003 e até nas tunas, como no caso da morte do estudante Diogo Macedo, do pólo de Famalicão da Universidade Lusíada, em 1991. A ordem unida académica, e depois até os exercícios do tipo G.A.M. (nalguns casos, literalmente) substituíu, aqui e ali, o serviço militar obrigatório, entretanto extinto...

Vem esta história, a propósito do caso dos seis estudantes da Universidade Lusófona engolidos pelo mar da praia do Meco, em 15-12-2014, no meio do que consta ter sido um fim de semana de praxe académica de tropa de elite, mais parecida com um ritual de sociedade secreta do tipo Skull and Bones (ou maçonaria). Um caso que não pode ser branqueado, como parece fazer o administrador dessa universidade, Prof. Manuel Damásio, em 28-1-2014, no Primeiro Jornal, da SIC, em 28-1-2014. Os estudantes mortos não voltam à vida, mas é útil, e pedagógico, o apuramento integral dos factos desta história incompleta e mal contada, para que circunstâncias dolorosas, como esta, não se repitam.

Perante a praxe académica, distinguem-se três atitudes: a contestação, a regulação e o alheamento. O alheamento é a política de não ver nem ouvir e concretiza-se numa decisão diretiva de algumas escolas na externalização da praxe: a praxe continua mas fora das instituições e as direções das escolas podem alegar desconhecimento do que se passa. A constestação opõe-se à praxe, por princípio, independentemente da sua forma, pois entende-a como ritual do «fascismo», desde logo o traje. A regulação parte da pedagogia para prevenir abusos, e prevê normas e sanções dos órgãos da própria instituição,  com comunicação às autoridades dos atos de violência e de coação. 

Destas três atitudes perante a praxe académica a que entendo mais válida é a regulação. Não adianta proibir a praxe, toda e qualquer que seja. Importa que a praxe respeite a dignidade humana, que não se admita a violência física, psicológica ou a humilhação, nomeadamente de caráter sexual, sobre os caloiros, que se evitem atos perigosos para a vida, do género de exercícios militares, instruídos por protomilicianos insensatos. Para além de dever ser respeitado, integral e imediatamente, o direito de o aluno se declarar anti-praxe e não participar nas suas atividades, e o direito de se recusar a participar em qualquer ato perigoso ou repulsivo, sem sanção ou perseguição escolar.

Não é preciso alterar o código penal ou criar uma polícia privada das instituições, como nos EUA. Basta a comunicação aos órgãos judiciais e institucionais de qualquer abuso com relevo criminal ou de desrespeito humano. A dignidade humana tem de ser respeitada sempre, pois não é raro que o caloiro se possa sentir constrangido, por vontade de pertença, a fazer algo que sente degradante e insuportável. À parte a resolução dos censuráveis excessos que têm de ser tratados por outra via, a melhor política institucional perante a praxe é a persuasão e o bom senso. Há anos largos, veio um aluno meu ter comigo e disse-me: «Professor, estivemos a refletir na associação de estudantes e achámos que o professor tem razão no que nos disse em aula: vamos acabar com a cena do pudim Danone...».

E, se assim forem prevenidos os abusos, como assim deve ser, apesar do peso na eficácia letiva de algumas instituições - que tem de ser aliviado nas horas das aulas -, os rituais da praxe académica, como o traje, o apadrinhamento, o ensaio vocal, os desfiles, os eventos e as festas, o trabalho organizativo nas associações, as equipas desportivas e os grupos culturais, etc., podem ajudar à integração dos estudantes na escola.


Atualização: este poste foi atualizado às 14:56 e 16:12 de 28-1-2014.


* Imagem da Cabra, da Universidade de Coimbra, picada daqui.


Limitação de responsabilidade (disclaimer):  As entidades referidas nas notícias que comento não são, que eu saiba,arguidas pelo cometimento de qualquer crime, nem suspeitas do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade.

10 comentários:

Anónimo disse...

Resquícios de uma abrilada em fim de linha. A tradição das praxes, com algum jeito e alguma maluquice, vinha de Coimbra.

As privadas e os politécnicos, quiseram embandeirar um pretenso academismo. Pegram pela pior parte, em vez de aulas e professores de jeito, quiseram apostar "num academismo modernaço".

Agora, quem terá cooragem para acabar com o vandalismo das praxes, quase generalizado?! Ninguém.

Os Reitores, essa casta intocável, muito responsável pelo actual beco da nação, sabem muito bem o que se passa. Basta ir a qualquer unioversidade em "época oficial" de praxes, para se ver o ambiente de quase terror, e de humilhação e de penalização. Claro que os Reitores frouxos de Abril são incapazes de lidar com a violência do politicamente correcto.

Esperar que tudo se reolva em Tribunal, é igual a pensar que o tráfico de influências que existe em Portugal pode ser resolvido em Tribunal.

Portugal, em fim de linha. Graças a Deus.

Anónimo disse...

A tragédia no Meco, somada às mortes anteriores de estudantes por causa de praxes, maila licenciatura do Relvas, pode bem ser o princípio do fim da Lusófona por muito que isso doa à maçonaria e ao seu Damásio de avental. A pouco e pouco, as universidades privadas fecharão as portas que nunca deviam ter sido abertas; foram elas os grandes alfobres da mediocridade nacional.

lidiasantos almeida sousa disse...

Talvez possam fechar também a Lusíada, onde as Professoras do ALFORRECA, Maria Luís Albuquerque e Teresa Leal Coelho foram suas professoras e deram-lhe muitos créditos pela brilhante carreira Profissional que ele teve ao longo dos seu 37 anos, na altura. Mas as Senhoras tiveram olho, uma agora é Ministra das Finanças, sem qualquer curriculum a não ser Funcionária Publica no Ministério das Finanças a outra é mais complicado, foi nomeada vice Presidente do Benfica com o grande PSD chefe da Distrital da Costa da Caparica e não só, como esperta que é ensinou o Tonto a fazer falsificações, outras foram feitas por ela. segundo outro PSD emérito o Manuel Vilarinho, que por amizade não a processou só a despediu. Dali foi para o CCB voltou a transgredir mas o Presidente da altura um PSD rigoroso, que felizmente há muitos, o Professor Frausto, fez queixa dela, foi condenada com pena suspensa mas teve de repor o que tirou. Está agora a preparar-se para ir com o Marido e ex. secretário do XUXA ou não XUXA Luis Amado prachado com um lugar de Administrador do BANIF. que está a estagiar no gabinete do ALFORRECA com o Super Espião Silva Carvalho também lá acoitado depois do falhanço da ONGOING ( Quem se mete com o Balsemão leva) para ser Embaixador de Portugal em Madrid. Como o Portas, Catherine, eu também tenho um relógio, faltam 150 dias, 4 horas e 5 segundos para o Francisco Ribeiro ir para Madrid e levar a bombocas que está mesmo a precisar de ir ao Quirófano, como se diz em Espanha, tirar o duplo queixo e não só. À outra Professora esperam mais altos voos na Europa que os machos andam todos excitados.

Anónimo disse...

Luís de Guindos suspira pela Maria Luís. Quem sabe, a Ibéria à vista!

Anónimo disse...

http://economico.sapo.pt/noticias/verdadeira-reforma-do-estado-nunca-foi-feita_186030.html

"A Expo 98 é o exemplo paradigmático de uma grande despesa que é uma afectação péssima de recursos públicos" a uma área que "não transmitiu qualquer benefício à economia. "Os submarinos, pois claro, os estádios de futebol", são outros exemplo da depredação dos recursos financeiros do Estado. Défice público e dívida pública foram o resultado. "O deslumbramento pelo Estado social, que só deve ser para os mais desfavorecidos", ajudou a afundar os recursos do Estado. Cadilhe teve oportunidade de explicar que "o princípio de equidade" não faz sentido nas mais diversas áreas, dos transportes à saúde. Pagar em função dos rendimentos - quem pode paga, quem não pode não paga" é a estratégia acertada, afirmou o ex-ministro.

Banco de Portugal e Tribunal de Contas, instituições que devem fiscalizar a República, não funcionaram ao longo dos anos em que 'o monstro' cresceu. Por outro lado, Cadilhe reafirmou que o guião da reforma do Estado, da autoria do ministro Paulo Portas, "é de uma pobreza" difícil de compreender. E está diametralmente por fazer. "Estamos no Estado mais centralista da União Europeia", recordou.

"Conseguir obter o equilíbrio interno é o grande desafio do país", afirmou Vítor Bento - o que só se consegue com crescimento. Mas, recordou, "temos de recuar à década de 20 do século passado para encontrarmos uma década em que o crescimento tenha sido tão baixo como é na década actual".

Manuel de Castro disse...

Por onde andava Miguel Cadilhe quando se desmantelou o sector primário da economia???
E quando se fizeram as obras faraónicas?

Anónimo disse...

A quando das obras faraónicas, Cadilhe deleitava-se com o Jardim no Taguspark, a montar as operações de compra de acções na Ilha de Jersey!

Anónimo disse...

Viva o Zé Sócrates.

http://economico.sapo.pt/noticias/fornecedores-da-parque-escolar-alvo-de-buscas_186060.html

Autoridade da Concorrência e DIAP de Lisboa estão a realizar buscas em várias empresas ligadas à Parque Escolar.

As irregularidades detectadas e a falta de controlo do Estado na requalificação de mais de 300 escolas secundárias comportam indícios de crimes de burla e estão por isso a ser alvo de investigação judicial. Isto depois das conclusões das auditorias da Inspecção-Geral de Finanças e do Tribunal de Contas. As despesas na recuperação de edifícios derraparam mais do triplo - de 940 milhões de euros para 3.168 milhões - e a requalificação de algumas das 205 escolas que então tinham sido intervencionadas custou 30 mil euros por aluno.

As auditorias revelam que o controlo sobre a Parque Escolar não foi exercido pelos Ministérios das Finanças e da Educação, com o TC a apontar o dedo aos ex-ministros Teixeira dos Santos (Finanças), Maria de Lurdes Rodrigues e à sua sucessora Isabel Alçada (ambas da Educação).

Anónimo disse...

Diz o sempre brilhante Luis Fazenda que "cultura das praxes é "humilhante" e "antidemocrática" e exige ação do Governo sobre esta prática académica"

Ler mais: http://expresso.sapo.pt/be-exige-acao-contra-praxes-imbecis=f853176#ixzz2roKgtUVy

Muito bem ! Nosso PAI, o GOVERNO, que resolva todos os problemas que estão mal na vida (dos cidadãos em geral).

Um passarinho disse-me (mas não deixou o link !) que o BE quer introduzir o "dia nacional da iniciação gay", onde, por exemplo, os cidadãos de sexo masculino terão direito a uma penetração no anus para assim poderem provar o que de melhor existe no mundo. Só quem já experimentou é que pode, de pleno direito, dizer se é a favor ou contra dos gays, NÂO É ?

Bruno

Nota: o passarinho que me disse isto foi (acho) o mesmo apareceu ao Nicolas Maduro, cantando as sábias palavras do El Coma Andante !

Bruno

Anónimo disse...

Para a Esquerda (BE, PC, Ps-Seguro e também a Velha Manela), a posse dos quadros do Miró é parte da Independencia Nacional.

O BE, PC, Ps-Seguro e também a Velha Manela, não se incomodaram com a venda da ANA, da REN, do que restava da EDP, etc., mas os quadros do Miró são tão sagrados para Portugal como a Constituição.

Aliás, para o BE, PC, Ps-Seguro e também a Velha Manela, todos os portugueses devem poder ver um quadro do Miró na Junta de Freguesia mais próxima.

Portugal está mais próximo de perder a independência, do que a Catalunha de a não conseguir!