Um comentador que muito prezo recomendou-me que lesse a carta do teólogo Hans Küng aos bispos do mundo publicada no dia 16-4-2010 no Irish Times: «
Church in worst credibility crisis since Reformation, theologian tells bishops». A recomendação foi feita no dia seguinte à publicação da carta e nesse dia a li, tomando algumas notas no texto. Entendi que a deveria comentar, mas interpuseram-se outros assuntos mais urgentes - como a bancarrota do Estado e a sua soberania restante, além do constante combate pela democracia - e só agora encontro alguma tranquilidade para abordar o assunto. Tenho até a vantagem de ter lido, entretanto, a resposta de George Weigel na prestigiada First Things: «
An Open Letter to Hans Küng», de 21-4-2010 (via
João Gonçalves, do Portugal dos Pequeninos) - ler a tradução para português «
Carta Aberta a Hans Küng - por George Weigel».
Falarei sobre o Papa Bento XVI, a propósito deste ataque do teólogo - e padre... - Hans Küng.
George Weigel encontrou o «
odium theologicum» na fonte deste
texto e do comportamento de Hans Küng relativamente ao seu colega teólogo do Concílio Vaticano II, Joseph Alois Ratzinger. Admito que o motivo deste ataque, feito numa oportunidade de fragilidade da Igreja, devido à nova torrente de notícias novas e repetição de notícias velhas sobre abusos sexuais de crianças, de adolescentes e jovens, por parte de clérigos e colaboradores da Igreja, seja ainda mais fundo:
a inveja. A carta de Küng é, assim, uma tentativa de
desforra do confronto conciliar, meio século depois.
Na Igreja pós-Concílio Vaticano II, a linha católica conservadora consolidou, nos papados de João Paulo II e de Bento XVI, a vitória sobre a facção protestante liberal.
O mesmo se havia passado já com a
superação (cristianização) da marxista, e legitimadora da violência,
Teologia da Libertação - ver «Igreja, Carisma e Poder», que muito me impressionou, por «algumas sementes de verdade» (para usar as palavras do Papa João Paulo II sobre o socialismo marxista, em
entrevista a La Stampa, de 2-11-1992) no diagnóstico de afastamento entre a Igreja-hierarquia e a circunstância dramática dos seus fiéis. João Paulo II liderou a luta contra o marxismo na Igreja, muito preocupante na América do Sul e Central, e o relativismo liberal. O problema da Teologia da Libertação foi resolvido com a neutralização do marxismo e a integração das sementes de verdade, na libertação humana e na pastoral (com a maior ligação entre o padre e a comunidade), na qual também participou, em apoio de João Paulo II, nessa altura o cardeal Joseph Ratzinger - e
Leonardo Boff abandonou, entretanto, o sacerdócio e
afastou-se ainda mais da doutrina da Igreja.
A
batalha contra o relativismo moral, empreendida por João Paulo II (começar por ver a brilhante
Carta-Encíclica Sollicitudo Rei Sociallis, de 1987), continua com Bento XVI, que já tinha sido um fiel colaborador do Papa na área teológica. Lembro a sua homilia na
Missa Pro Eligendo Romano Pontifice, em 18-4-2005, na qual criticou:
a «ditadura do relativismo que nada reconhece como definitivo e que deixa como última medida apenas o próprio eu e as suas vontades.»
A luta com o relativismo moral, o totalitarismo do
politicamente correcto, que quer impor-se mesmo no terreno interno da Igreja, é mais subtil, porque este é mais insidioso: não há a violência física do marxismo em acção, mas a violência mediática e a ostracização pública. Mais ainda, o relativismo foi reforçado: as forças clássicas do livre-pensamento maçónico, do ateísmo materialista, dos liberais paelo e neo-clássicos, e dos que passam a odiar a Igreja quando a sua vida sofre a ruptura da separação conjugal ou uma grande amargura que os afaste da graça da Fé, foram aumentadas com a transmutação dos vencidos do marxismo. Note-se que, em Portugal, também houve, nos tempos revolucionários do final de 1974 e de 1975, uma adesão temporária de ateus materialistas ao comunismo que lhes passou, como diz a minha mãe, quando perceberam que afinal «o comunismo não era só contra o padre»...
É no contexto dessa batalha do relativismo moral contra a Igreja, principalmente por causa da moral sexual e do dinheiro, que se inscreve a carta do
teólogo suíço, a quem o Papa, logo que eleito, num gesto de conciliação convidou para Castelgandolfo. O combate do relativismo tem forças internas acólitas, mas a sua origem está fora: é um facto peculiar destes tempos que estejam no exterior da Igreja os mais vocais preocupados com a sua mudança: não acreditam em Deus Nosso Senhor Jesus Cristo, mas pretendem mudar a doutrina da Igreja!... E a Igreja, povo e instituição, no seu conjunto - Papa, bispos, padres, monjes e monjas, e leigos -, que tem mais de dois milénios de história, sabe que só existe para mudar o mundo e que, se passasse a ser mundana, se dissolveria no secularismo que lhe aconselham ser... salvífico.
Muito do que Küng disse na carta aos bispos é falso, com indignação maior, como reage Weigel, para a acusação à Congregação para a Doutrina da Fé, dicastério da Cúria Roman de que Ratzinger foi Prefeito, de que encobria os abusos, quando só a partir de 2001 ganhou a competência de julgamento desses casos e começou a definir uma política mais severa relativamente a abusadores, numa repressão e prevenção dos abusos que, já como Papa, tem endurecido.
Contesto o conteúdo da carta de Hans Küng.
O pontificado de Bento XVI tem o amor de Deus como princípio. E tem como função o serviço da Verdade, na demonstração, pela mensagem, de que a fé é também uma imanência da razão - numa
actualização de
Santo Agostinho. Como explica John L. Allen Jr., em «
10 Things Pope Benedict XVI Wants You to Know», a fé precisa da razão e a razão carece da fé. A fé precisa da razão para evitar o cinismo, o nihilismo e o desespero. A fé precisa da razão, para se proteger do fundamentalismo, do extremismo e da violência. A Verdade é o resultado dessa conjunção da fé e da razão.
Enquanto o protestantismo se desagrega - ainda mais - e se profana, a Igreja Católica mantém-se como farol de consciência e unidade doutrinária e de prática, chegando, por isso, a atrair até os anglicanos descontentes. Todavia, visto como inflexível, é, possivelmente, o mais colegial dos últimos papas.
Bento XVI não tem uma vocação política, mas mais eclesial, contudo não deixa, de criticar corajosamente a guerra, a pobreza e a corrupção, in loco, como fez em África, as consequências tangíveis do relativismo moral no aborto e na eutanásia, na desagregação da família e da sociedade, na proibição mais ou menos mitigada da religião e reclamar a protecção dos mais humildes, dos doentes e do ambiente, afirmando a independência da Igreja face aos estados.
No plano interno da Igreja aumenta o esforço de
reconciliação interna, para acomodar os descontentes mais liberais e para
eliminar a tentação cismática do integrismo, ainda que correndo o risco de descontentar aqueles que entendem legítima apenas a conciliação externa. A mesma conciliação tem feito com as comunidades cristãs ortodoxas.
Mantém, sem comprometer a essência da doutrina, a
preocupação ecuménica, na conciciliação universal com as outras comunidades religiosas, como os judeus e os islâmicos. Isto sem conceder à mentira repetida de que Pio XII não condenou o Nazismo, nem o Holocausto, nem protegeu os judeus, quando a Igreja, com sua ordem e gravíssimo risco, salvou centenas de milhares de judeus de serem deportados e mortos nos campos de concentração - em contraponto com os dirigentes políticos aliados que encobriram do público os factos e as denúncias, como as de
Jan Karski, por o tema não lhes ser prioritário...
Não beneficia do carisma mediático nem da energia do jovem João Paulo II, mas professor, que foi, e
intelectual, que é, mantém uma grande capacidade de
diálogo, paciência, serenidade e respeito com quem os outros, que podem ser coincidentes ou pensarem de modo diferente. Essa atitude também decorre da sua opção, no núcleo do apostolado da Igreja, pela Verdade e pelo Amor (
Cooperatores Veritatis), que atraiem, em vez do poder e da lei, que obrigam, num tempo que alguns julgam já pós-cristão.
Promove a
reforma da Igreja na sua relação com o mundo moderno, para maior atenção, sanidade, transparência e prestação de contas - nomeadamente na prevenção e repressão da vergonha dos abusos sexuais de crianças, adolescentes e jovens. E encoraja a evangelização efectiva através dos novos meios de comunicação (ver, por exemplo,
http://www.pope2you.net/), em vez do silêncio, da reclusão, do recuo do espaço público, da resignação, do conforto e do receio de contacto com os não-crentes. Nesse sentido,
destaque para o recente conselho de Bento XVI aos padres para que usem os novos meios digitais de comunicação, entre os quais... os blogues:
«aos presbíteros é pedida a capacidade de estarem presentes no mundo digital em constante fidelidade à mensagem evangélica, para desempenharem o próprio papel de animadores de comunidades, que hoje se exprimem cada vez mais frequentemente através das muitas «vozes» que surgem do mundo digital, e anunciar o Evangelho recorrendo não só aos media tradicionais, mas também ao contributo da nova geração de audiovisuais (fotografia, vídeo, animações, blogues, páginas internet) que representam ocasiões inéditas de diálogo e meios úteis inclusive para a evangelização e a catequese.»
Mensagem do Papa Bento XVI para o 44.º Dia Mundial das Comunicações Sociais, «O sacerdote e a pastoral no mundo digital: os novos media ao serviço da Palavra», 16-5-2010
Os homens e as instituições não são perfeitos. A sua santidade estará na sua capacidade de redenção do Mal. A Igreja ultrapassará mais esta fase de sofrimento, limpeza e catarse e, depois, desejavelmente com serenidade, empreenderá as reformas internas necessárias, nomeadamente na organização, no laicado e no papel da mulher. Reformas que que não sofrem de objecção dogmática. Uma
«hermenêutica de continuidade» em vez de uma «
hermenêutica de ruptura» (Bento XVI, 22-12-2005).
Portanto, concluída a análise da sua carta, vemos que
Hans Küng pode ter tido a oportunidade, mas não tem razão.
E é este homem, ao mesmo tempo frágil, fustigado pelo ditadura do relativismo moral, contestado com violência e desumanidade por não deixar levar a Igreja por «
qualquer vento de doutrina» adversa que a conduziria ao precipício, e, ao mesmo tempo Pedra, que se mantém intacta da erosão dos tempos ácidos e turbulentos, que, em paz, se junta a nós, portugueses, no âmago
ainda fidelíssimos, em meados de Maio de 2010, para um encontro apostólico. Saibamos acolhê-lo, agradecer-lhe e receber a sua bênção.