sexta-feira, 10 de maio de 2019

Com que se há-de salgar?


Escombros da catedral de Notre-Dame de Paris, NYTimes, 16-4-2019.


A Carta Apostólica sob forma de motu proprio (por sua iniciativa) do Papa Francisco «Vos estis lux mundi», de 9-5-2019, aos bispos, sobre o abuso sexual de menores (‹‹idade inferior a 18 anos, ou a ela equiparada por lei››) e pessoas vulneráveis, pornografia de menores, e seu encobrimento, é um avanço na prevenção e repressão da pedofilia na Igreja. Destaco e comento.
  1. Obriga os bispos a criar um guichet para receber as denúncias (‹‹assinalações››) e a encaminhá-las para o Dicastério da Santa Sé, com relatórios mensais sobre o andamento das investigações. Aumenta o controlo sobre as dioceses o que é positivo.
  2. Prevê também o recurso a ‹‹pessoas qualificadas›› em cada diocese, ou em conjunto (por exemplo, a nível nacional), para ‹‹auxiliar›› o bispo na investigação das denúncias. É uma abertura para que especialistas leigos possam participar nas investigações, em vez da utilização de clérigos ao modo de frei William of Baskerville. Porém, o modo mais útil seria a instituição de comissões independentes de especialistas leigos.
  3. Estabelece, no seu art.º 19.º, que ‹‹estas normas aplicam-se sem prejuízo dos direitos e obrigações estabelecidos em cada local pelas leis estatais, particularmente aquelas relativas a eventuais obrigações de assinalação às autoridades civis competentes››. A ‹‹observância das leis estatais›› é dever indeclinável desde sempre, obrigando todos os cidadãos à participação de crimes de que tenham conhecimento. Isso não era feito, entendo-se internamente que que o Código de Direito Canónico seria a única lei aplicável e a suspensão a divinis seria a sanção máxima para o abusador. A sanção canónica parece ter sido fraco disuasor para prevenir a violação da inocência das crianças:  a pena estatal de reclusão do abusador de crianças num cárcere, acompanhada da sua exposição pública, é mais pesada e assusta. O paradigma era o segredo em vez da transparência, o encobrimento em vez da responsabilização, o perdão do abusador em vez da proteção das vítimas, a transferência em vez da expulsão. Ora, como tenho salientado, uma coisa é o processo canónico, que em todo o caso deve existir para efeitos religiosos, e outra o processo penal e civil cuja competência é do Estado para cujas autoridades devem ser comunicadas imediatamente as denúncias. A isenção de clérigos e membros de ordens religiosas da justiça do Estado era algo da Idade Média, aplicável então nos coutos da Igreja. Não era possível manter. A prioridade tem de ser sempre dada às crianças vítimas dos abusos sexuais e não à defesa dos abusadores. Portanto, este motu proprio fica ainda aquém do que o problema  da pedofilia carece e do que a sociedade reclama. As denúncias às autoridades estatais de suspeitas de crimes, praticados por clérigos, membros de ordens religiosas, catequistas, acólitos e outros, de abuso sexual de menores e desvalidos (deficientes, etc.) e do uso da violência sobre adultos e da produção e uso de pornografia de menores, não são obrigações ‹‹eventuais››, mas fundamentais e imediatas. A comunicação às autoridades estatais deve ser pronta, correndo o processo penal e civil em paralelo ao processo canónico.

Em suma, este motu proprio, estendendo a linha de anteriores posições, é um avanço, mas ainda falta percorrer mais caminho. Se o sal se corromper, com que se há-de salgar?


Atualização: este poste foi atualizado e emendado às 19:32 de 10-5-2019.

1 comentário:

Anónimo disse...

Aplicar com naturalidade e com equidade o «a Deus o que é de Deus» — «a César o que é de César» é, e será, sempre muito difícil.
O Papa é como nós, um pecador. Desde sempre, o que um Papa diz ou escreve tem sido analisado e julgado por outros pecadores.

Grato pelo seu trabalho, pela sua cruzada.
ao