Ivo Rosa, atual segundo juiz do Tribunal Central de Investigação Criminal (TCIC), com a incumbência do processo Marquês, foi escolhido como candidato a juiz do «Mecanismo internacional encarregado de exercer as funções residuais dos tribunais penais» (IRMCT, conhecido na ONU por «o Mecanismo»), pelo segundo Governo de José Sócrates, que durou até 21-6-2011? Ponho a questão porque é necessário confirmar. Vejamos.
O dito Mecanismo da ONU foi criado como estrutura permanente, em 22-12-2010, na sequência dos tribunais. criminais internacionais ad hoc das Nações Unidas para o Ruanda e para a antiga Jugoslávia.
O procedimento de nomeação dos juízes para a bolsa do Mecanismo, segundo o art. 10 do Estatuto do Mecanismo, foi o seguinte: após a criação do Mecanismo em 22-12-2010, o Secretário-Geral da ONU convidou os Estados-Membros a indicar-lhe no prazo de sessenta dias os candidatos para a bolsa de 25 juízes do Mecanismo; o Secretário Geral remeteu as candidaturas recebidas ao Conselho de Segurança; o Conselho de Segurança elaborou uma lista com mais de trinta candidatos, em 16-11-2011; a lista foi remetida à Assembleia Geral que, finalmente, elegeu os 25 juízes em 20-12-2011.
O art. 9, parágrafo primeiro, do Estatuto do Mecanismo define que os juízes do Mecanismo devem ser pessoas de elevado caráter moral, imparcialidade e integridade, que possuam as qualificações requeridas nos respetivos países para nomeação para os tribunais superiores («highest judicial offices»(. O juiz Ivo Rosa (conforme o seu CV atual) tem experiência internacional de relevo no direito criminal em Timor (2006-2009) e na mentoria de juízes na Guiné (2010) e o art. 9 número 2, requer que os juízes do Mecanismo possuam experiência no direito criminal e direito internacional, especialmente do direito internacional humanitário e dos direitos humanos. Contudo, tinha o juiz, à data da sua escolha, pelo Governo português, em 2011, as qualificaçōes requeridas para nomeação para os tribunais superiores?
O juiz Ivo Nelson de Caires Batista Rosa tomou posse do cargo de juiz do Mecanismo em 18-5-2012, para um mandato de quatro anos, renovável.
O número 3 do art. 10 do Estatuto do Mecanismo estabelece que os juízes do Mecanismo são elegíveis para renomeação, pelo Secretário-Geral da ONU, após consulta aos Presidentes do Conselho de Segurança e da Assembleia-Geral.
Em 8-9-2020, a agência Lusa noticiou que o Secretário-Geral da ONU, António Guterres, escreveu ao juiz Ivo Rosa a convidá-lo a permanecer por um novo mandato de dois anos no cargo de juiz do IRMCT. Porém, os 25 juízes do Mecanismo foram todos reconduzidos para um mandato de dois anos, com início em 1-7-2020. Um cargo que estes juízes devem exercer sob o Código de Conduta Profissional dos Juízes do Mecanismo, aprovado em 18-4-2018.
António Guterres é amigo pessoal de longa data de José Sócrates, a quem visitou na prisão de Évora, em 15-5-2015, aí detido no âmbito do processo Marquês, agora em instrução pelo juiz Ivo Rosa, no TCIC. A imprensa não publicou o conteúdo da carta de convite de Guterres a Rosa, nem é possível, concluir-se, com base nos dados disponíveis que houve tratamento especial do juiz pelo secretário-geral da ONU, relativamente aos outros 24 juízes.
Como se percebe, a nomeação do juiz para o Mecanismo e a sua manutenção no cargo dependem do Governo português.
A escolha do candidate português Ivo Rosa a juiz do Mecanismo, que deve ser desempenhado com autonomia e imparcialidade, foi feita pelo Governo português, bem como o apoio diplomático à sua candidatura em 2011. O representante permanente de Portugal junto às Nações Unidas, em Nova Iorque, era o embaixador José Filipe Mendes Moraes Cabral (2008-2013) que, nesse quadro, foi representante de Portugal no Conselho de Segurança da ONU no biénio 2011-2012, quando foram escolhidos os candidatos a apresentar à Assembleia Geral para eleição dos 25 juízes do Mecanismo (de acordo com as alíneas b e c do n. 1 do art. 10 do Estatuto do Mecanismo). José Moraes Cabral foi, entre 2001 e 2004, chefe da Casa Civil do Presidente da República Jorge Sampaio, de quem era «amigo pessoal».
O cargo no Mecanismo depende também, em última razão, da confiança do Governo português, que pode, justificando, indicar que o juiz não goza das condições referidas no art. 9 do Estatuto do Mecanismo se o quiser afastar da posição - veja-se o caso de retirada de confiança do Governo turco ao juiz Aydin Sefa Akay, em 2018, que, ainda que sujeito a manobra política, acabou por ser afastado do cargo.
A confirmar-se que foi o II Governo de José Sócrates quem nomeou, em 2011, nas condições descritas, Ivo Rosa como candidato ao Mecanismo da ONU, cabe ao Ministério Público avaliar se é justificável apresentar um incidente de recusa do juiz de instrução do processo Marquês, em que o ex-primeiro-ministro é arguido.
Sem comentários:
Enviar um comentário