quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A geração que passou

Com um agradecimento à Helena Matos das Blasfémias que indicou a data e copiou alguns excertos do artigo no Público de 24-9-2005 (via MacGuffin) e no Blasfémias (link indisponível), andava há tempo para conseguir transcrever o artigo completo do Prof. Doutor Manuel Rodrigues sobre Salazar publicado em 31 de Dezembro de 1938 no jornal O Século, faz agora exactamente setenta anos.

Porque se adapta à situação, que não apenas a um homem, nem sequer a um grupo, mas à forma de fazer política de uma geração (de um sistema!), aqui o trago. Uma geração de mentira, que ocupou o poder, mas nada sabia nem fez, senão a desgraça e abuso que se conhecem. Uma geração que já passou, mas resiste a passar.



Artigo do Prof. Doutor Manuel Rodrigues ("M."), ministro da Justiça, sobre Salazar[mantive a grafia do texto original]
" «Problemas sociais -
O Homem que passou»

M.
O Século, 31-12-1938, pp. 1-2

Parece o título de uma comedia ou de um drama; todavia, para ser comedia, falta-lhe a futilidade e a graça; e para ser drama, ainda que dêle haja a angustia, falta-lhe a singularidade. Coolus escreveu, é certo – Unne femme passa – e também na canção se diz que uma mulher passou. Em qualquer dos casos passou, não devia ter passado, mas enfim, bem ou mal, tudo ficou arrumado na peça e na canção. Aqui a história é outra. Alguns hão-de dizer que não se vê bem como possa constituir um problema social o homem que passou; e eu digo que não um só mas muitos problemas sociais existem no argumento.
*

Mas o que é o homem que passou? A Lacordaire, que foi tão grande orador, preguntaram um dia, quando a sua vida ia muito longa, porque já não falava e êle respondeu: cada homem tem o seu tempo, cada palavra a sua hora. Admirou o interlocutor a resposta que era ainda digna do espiritual e fulgurante orador, e deu-se por convencido. Ela, na verdade, contém tôda a filosofia do homem que passou e é a sua melhor definição. O homem que passou é aquele que desempenhou a sua missão, que a desempenhou bem ou mal, não importa, e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira. Se é orador, a sua palavra jámais será escutada; se é guerreiro, os soldados já não seguirão a sua espada; se é político as multidões não lhe obedecerão; e nunca mais o seu braço será procurado, nem o seu conselho pedido, e nem a sua voz desviará Francesca da leitura que ela tantas vezes interrompera.

O homem que passou é o homem que já não conta, o homem com quem o tempo não conta por lhe faltar a chama interior do entusiasmo ou o favor da opinião, estas duas energias sem as quais não é possível realizar uma obra ou prosseguir um destino.
***

Este destino de passar não sei se é um bem, se é um mal; mas talvez seja um bem, porque só do homem se diz com rigôr que passa e o melhor destino foi conferido ao homem.

Muitas vezes me sucede, ao contemplar qualquer das maravilhas da arquitectura do passado, esquecer-me do seu desenho soberbo, da sua traça maravilhosa, para só pensar naqueles que as ergueram ou nelas passaram a vida. As pedras estão ali, o tempo poupou-as, mas os que as carrearam, afeiçoaram e sobrepuseram e sob o seu abrigo viveram êsse levou-os o tempo. E, contudo, entre o homem e a pedra não há dúvida na preferencia; era o homem que sentia e criava… e foi a pedra que ficou. Aqui há um motivo para uma convicção e por isso me inclino para que seja um bem, bem para os outros e para êle mesmo. Cada homem que passa traz, na medida própria, o seu contributo ao mundo; enriquece-o com o esfôrço do seu braço e com a fulguração do seu cerebro e, quando o braço descai fatigado ou o cerebro já não fulgura, o seu contributo está prestado. Disse a sua mensagem e doravante a sua mensagem não sugestiona, perturba; a sua presença não anima, embaraça; e até a sua ternura não aquece, fatiga. E avanço mesmo em dizer que para êle próprio é um bem. Em um mundo em que tudo cansa também a vida cansa; mesmo quando se desenhou um alto ideal e êle se fez realidade, mesmo quando a fada que doba os fios da existencia os dobou sem os enredar. E ainda que haja em nós o sentido da imortalidade, êsse sentido só se compraz, não sei por que motivo, para lá da linha das sombras e na comunhão de todos os que amámos. Isto não quere dizer que não tenha alguma coisa de doloroso o passar antes do passamento. O sentir que se vai passar gera a melancolia, a tristeza em todas as coisas e não é de admirar que a gere no homem. Todos os dias o Sol morre e, embora saiba que vai ressurgir no dia seguinte, não morre sem empalidecer; ora o homem tem mais razão do que o Sol para se entristecer, porque o que para êle morre, mesmo que não seja com a morte, não ressurgirá. Talvez ainda haja para êle um pouco de luz, mas ela jámais será brasa, e as suas ilusões nunca mais a vida as tingirá de côres sugestivas. Mas para que o homem que passou empalideça ao passar não concorre só o sentir que a sua vida vai extinguir-se e já não incendiará ideias e paixões, concorre ainda o lembrar-se que o passar reage sôbre o seu passado, porque, quando passar, passará logo a consideração e a amizade.

O que até então fôra louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros, e se lhe mantém a autoria logo lhe desviam o objectivo; e onde houve o proposito de fazer por bem, logo dirão que o fez por mal, onde houve o maior desinteresse, logo lhe assinarão o melhor proveito.

O homem que passou é como o ano que passa. No momento mesmo em que corta a méta da eternidade, o ano que passou é mal querido e insultado. Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão, depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamôr, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerencias. Só se distingue o homem que passou do ano que passa, em que êste já se perde[r] na eternidade quando o injuriam, não houve as injurias nem conhece as ingratidões; e o homem que passou é ainda vivo quando ouve a recriminação onde antes ouvia o louvôr e sente a ingratidão onde antes havia o agradecimento.
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Passar é um destino do homem, que em regra a êle se submete, mas há quem não queira passar; ou melhor, quem não saiba determinar o momento em que passou. Ora a vida é um grande cortejo que segue cadenciado. Aquele que pretende deter-se põe em desordem o cortejo e gera a confusão, e por isso se descompõe nas atitudes com que resiste e perturba os que nele seguem. E então, onde houve louvores há agora censuras, onde houve carinho há agora aspereza e são até os que antes lhe abriram caminhos que o afastam agora com gestos desabridos.

O bispo era um grande, extraordinário orador. Na pujança do seu talento pôde pensar que um dia havia de vir a decadencia, mas êle queria abandonar o pulpito em plena glória para que na vida ficasse a fama da sua palavra vigorosa e sugestionadora e disse a Gil Braz: Tu, que és meu amigo, hás-de avisar logo que percebas que a minha eloquencia comece a declinar. Pouco depois sobreveio-lhe uma grave doença, mas quando se restabeleceu voltou ao pulpito. Foi ainda orador, todavia a sua palavra era já menos quente, a sua inteligencia menos vigorosa, a sua imaginação menos criadora, a impressão menos profunda. Tudo isto notou o confidente, mas não lho quis dizer. Talvez se tivesse enganado, talvez a acção da doença fôsse passageira. Falou novamente o bispo, mas o desastre foi completo. Do grande orador, só existia a pálida imagem do que fôra. Gil Braz pensou de seu dever avisá-lo, mas teve receio de o avisar. Todavia, a promessa que fizera com boa jura obrigava-o a falar e o proprio bispo exigia que lhe desse a sua opinião.

Com muitos rodeios, e com extrema delicadeza, Gil Braz disse-lhe que os dois últimos discursos, sendo ainda duas notaveis orações, se distanciavam muito das anteriores e revelavam um acentuado declínio. O bispo ouviu-o com serenidade, sorriu-se e, dizendo-lhe que êle não percebia nada de eloquencia, pois aquele fôra o seu melhor sermão, despediu-o com desprêzo e violencia. Aqui está o caso mais dramático do homem que passou. Porque com êle não é só o futuro que começa, é todo o passado que desaparece, pois todo êle passará a ser avaliado pelo presente. Aquele que não quere passar depois de ter passado, ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias. As palmas são para o tempo, para que seja contente e caminhe mais rápido, para que mais depressa o leve.
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Por acidente e só na aparencia, encontra-se ás vezes o homem que quere passar sem ter passado. Este desalento que anda pelo mundo e a todos toca, a algumas almas obsedia de tal modo que se deixam vencer antes de lutar. O pèssimismo, que em justa medida é necessário para dar um limite ás ambições, a-fim-de as tornar mais humanas, e efemeridade ás coisas para que as não amemos com preterição dos grandes deveres, veste-as cêdo das sombras do futuro e inunda-as de uma angustia que se impregna em cada uma das particulas do seu ser.

Esta angustia faz ver áquele que dela é preso, primeiro do que aos outros, a nuvem na linha do horizonte e, conhecendo-lhe a intenção dos elementos, definir-lhes a projecção. O que para os outros ainda é leve sombra, para êle já é sombra espessa, o que para os outros é ameaça, para êle já é realidade, e é por isso que o julgam com vida, quando já está morto, e presente quando já ausente.

E assim o homem com quem ainda se conta, mas com quem se não deve contar, porque êle já não tem fé e só com fé em si próprio se pode partir para a luta e oferecer combate.
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Aqui está um pouco de história do homem e a história é sempre a mesma. Acabaste de a ler e vejo-te um sorriso, talvez ironico. Mas não sorrias porque a tua história não é diferente. Ainda ontem o teu rosto tinha o viço da mocidade e os teus olhos o brilho de uma féerie. A primavera em flôr da tua vida era uma bela promessa que alarmava os corações e neles desenhava sonhos, quimeras, esperanças e já hoje no teu rosto se fixa a palidez do futuro, e nunca mais os teus olhos farão renascer o romance sem palavras da paixão ardente, violenta. E, agora, verás que onde houve gentilezas haverá impertinencias, onde houve solicitações haverá enfados. E que o mesmo tempo que leva na sua roda celere o momento do homem, leva também a tua hora, e um dia serás para os outros uma sombra que se esbate e para ti mesmo uma saudade que se adensa.

......................................................................................................M."


Pós-Texto: Mantive a grafia do texto original, mesmo se em 2008, dois acordos ortográficos depois, nos parece estranha. Fique claro que o conceito de geração aqui empregue não significa conjunto de pessoas da mesma idade, mas coorte de poder e estilo, sub-divisão de indivíduos que nasceram mais ou menos mesma altura e partilham a mesma experiência abusiva no poder, não pretendendo atingir a generalidade de pessoas isentas e escrupulosas suas contemporâneas.


Actualizações: este post foi emendado às 9:39 de 31-12-2008.

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