Mas, se alguém escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, seria preferível que lhe suspendessem do pescoço a mó de um moinho e o lançassem nas profundezas do mar. (Mateus 18: 6)
Sexta-feira da nossa Paixão. Em cada ano morremos e em cada ano ressurgimos. Vivemos de novo. No tríduo da Páscoa, passamos da morte à vida. Porque, na Verdade, cada homem nunca morre. Transita. Recomeça.
Esta Páscoa é mais dura para os católicos que a celebram, sofrem e festejam. Mais dura pela torrente de notícias, novas e velhas, sobre abusos sexuais de crianças por clérigos e em colégios religiosos - nos EUA, na Irlanda, na Alemanha, noutros países europeus e também em Portugal. O problema não é exclusivo da Igreja Católica, pois também afecta os chamados ritos protestantes e outras igrejas e instituições. Mas da Igreja Católica pretende-se a perfeição. Uma perfeição que não tem. A sua santidade decorre, além da sua origem divina, da consciência de que o pecado existe e será superado.
O abuso sexual de crianças não é apenas um pecado: é o maior
crime que a Humanidade sofre. Não é fácil de apurar, pois, como costumo dizer, deve ser um crime que um pedófilo nem sequer confessa ao espelho. Na sua tara, justifica-se intimamente, ou não, e continua a realizá-lo quando pode, e o deixam, escondendo-o e dissimulando dos outros, como um psicopata predador da inocência e fraqueza de crianças e adolescentes. Não é simples, então, prevenir e reprimir este crime, praticado por pessoas que se aproximam com especial insídia de locais e instituições frequentadas por menores. Menores que devem ser a principal preocupação da Igreja: entre a protecção da criança e a reputação do denunciado, a opção tem de ser pela criança.
Sabemos que a Santa Igreja é composta por homens, que são, por natureza, pecadores. Todavia, afligiu-nos a dimensão e extensão dos abusos. Mais ainda, custam-nos os erros na sua prevenção e na sua repressão. Não se pode consentir que a mó de moinho, a pena mais grave que Cristo firmou, arraste o pescoço da Igreja.
Por isso, importa, mais uma vez a redenção. Uma
redenção interna face ao pecado do silêncio e ao pecado da fraqueza na repressão dos abusos.
Silêncio face aos abusos, em nome de uma reputação colectiva de integralidade, para salvaguarda da aparência de santidade e de protecção de uma imagem de pureza, mesmo quando tingida pela lama. Um silêncio que magoa, uma vez mais, as crianças abusadas, pois precisam da catarse de acreditarem nelas, de lhes darem razão e apoio. Um silêncio que não resolve os abusos, pois as promessas de bom comportamento de pedófilos são ilusões que a experiência não perdoa: a pedofilia é uma tara incorrigível e é muito provável a ocorrência de novos abusos. Além disso, a sensação de imunidade eclesiástica, a expectativa do silêncio e da impunidade aumenta a liberdade dos abusadores para a realização de novos abusos. Por mais que doa, importa dizer que o motivo principal da prática da política do silêncio - que se transmite, erradamente, ser ancorada na instrução
Crimen Sollicitationis, de 1963, do cardeal Ottaviani, referente à denúncia desses crimes através da confissão, com um regime mais severo expresso na
carta De delictis gravioribus, de 2001, de Joseph Ratzinger, então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que
George Weigel e Jay Scott Newman explicam no artigo «Spreading the Big Lie», de 29-3-2010 - não aparenta ser a protecção das vítimas e dos acusados, mas a salvaguarda da reputação da Igreja e das suas instituições, também motivada pela habitual defesa dos pares. É melhor admitir o problema do que negá-lo. A negação do problema é uma barreira à sua solução.
Fraqueza na prevenção e na repressão dos abusos. Fraqueza na prevenção de um assunto tabu, inominável. E fraqueza na repressão, evitando arrostar com as dificuldades da suspensão do clérigo, ou religioso, a sua punição interna, a sua denúncia às autoridades civis e o ultraje público do conhecimento dos abusos. Porém, melhor que a manutenção de uma aparência imaculada é a evidência da prevenção, investigação, repressão e punição dos abusadores. A Igreja não é imune à procura dos tarados pelas crianças - mesmo que os números de abusadores não atinjam no resto do mundo a gravidade dos EUA, onde um estudo de opinião, de 2003, publicado no New York Times (Laurie Goodstein,
Decades of Damage; Trail of Pain in Church Crisis Leads to Nearly Every Diocese, New York Times, January 12, 2003, Section 1, p. 1, citado em
«Sexual Abuse in Social Context: Catholic clergy and other professionals», Special Report da Catholic League for Religious and Civil Rights, de Fevereiro de 2004) referiu que 1,8 % dos padres norte-americanos ordenados entre 1950 e 2001 foram acusados de abuso sexual de menores, sendo, segundo este relatório, a esmagadora maioria dos abusadores homossexuais, em percentagens que vão de 80 a 90%, e até 95% . Alguns pedófilos a Igreja terá e muitos destes não conseguem dominar a sua tara, praticando o abuso de crianças. Então, é melhor que se admita essa probabilidade e que, em consequência, se adopte uma política interna eficaz de prevenção e repressão dos abusos sexuais de crianças que inclua, entre outras
medidas:
- Aprovação de um código de comportamento que garanta a prevenção de abusos sexuais sobre crianças;
- Denúncia imediata às autoridades civis para apuramento de qualquer crime;
- Proibição imediata de contacto com crianças e adolescentes até à conclusão do processo;
- Suspensão imediata de funções quando se apurarem indícios fortes da prática dos crimes denunciados;
- Investigação interna extensa;
- Punição interna após condenação em processo canónico, além de serem assumidos os efeitos internos dos processos civis, e redução ao estado laical no caso dos abusadores condenados.
A Igreja tem de mudar de política interna face ao abuso sexual de crianças. Ao contrário do que foi, e tem sido seguido,
é a denúncia e a repressão dos abusos que garante a reputação da Igreja.
Devemos reconhecer que para a mudança do comportamento da Igreja face aos abusos sexuais muito concorreu a indignação da opinião pública e o pagamento de pesadas indemnizações, nomeadamente, nos EUA, às vítimas, pelos abusos e pela responsabilidade na sua gestão, no silenciamento, na transferência de abusadores para outras paróquias e funções, onde continuavam a praticar os abusos, e na falta de denúncia às autoridades civis - que a legislação de cada país impõe e a que a Igreja não pode furtar-se.
Assim,
na promoção da verdade e para a evolução da Igreja, e sem qualquer branqueamento da mancha dos abusos,
há que afirmar:
- A política do silêncio face aos abusos sexuais de crianças é inadmissível.
- Qualquer censura das vítimas e condescendência interna com os alegados abusadores é desumana;
- A denúncia de alegados abusos às autoridades civis tem de passar a ser obrigatória para que seja investigados, despistados e perseguidos.
- A transferência dos abusadores denunciados para outra paróquia, no país ou no estrangeiro, é inadmissível.
- Não se pode assimilar a pedofilia, e efebofilia, à homossexualidade, ainda que, entre os padres, segundo estudo sobre a situação dos EUA, a grande maioria dos abusadores seja homossexual, desvalorizando a sua gravidade moral e criminal ou, até, julgando-a, insensatamente, de forma mais suave do que o relacionamento de um padre com uma mulher adulta.
- A Igreja tem de purgar-se dos padres, religiosos e colaboradores no apostolado (por exemplo, catequistas e funcionários de colégios e lares), denunciados como pedófilos e sobre os quais existam indícios de abusos.
- A Igreja deve resolver sem demora a promiscuidade e encobrimento da pedofilia referida em certas instituições, por reforma ou dissolução, como é o caso flagrante da Legião de Cristo (do padre Marcial Maciel Degollado), cujos membros não tem culpa dos pecados do fundador, mas cuja notoriedade não pode ser apagada.
Dito isto tudo, não se pode aceitar a
confusão maliciosa entre:
- A prática dos abusos e o seu silenciamento;
- O encobrimento dos abusos e a sua repressão secreta;
- A cumplicidade e a negligência;
- A negligência e a demora nos processos canónicos.
A questão do oportunismo nunca elimina a questão substantiva. Os abusos sexuais de crianças e adolescentes ocorreram e a política da Igreja para a prevenção e repressão dos abusos foi ineficaz e, em muitos casos, condescendente com os abusadores e severa com as vítimas, intimadas ao silêncio. O facto da Igreja, e do Papa, estarem a ser atacados, nestes tempos de
Barrabás, pelos
sectores mais liberais e pelos meios anti-religiosos, por causa da sua agenda conservadora, especialmente a questão da moral sexual, não reduz a gravidade dos abusos sobre as crianças, nem os pecados do silêncio e da fraqueza na prevenção e repressão dos abusos sexuais. Esse facto não consente a omissão de clérigos e leigos em debater e enfrentar o problema.
Depois do que li, e li bastante para poder escrever de modo fundamentado,
não creio que se possa imputar ao actual Papa Bento XVI qualquer cumplicidade nos abusos, nem negligência, nem como papa, nem enquanto prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, bispo, professor e padre - e o mesmo penso acerca de João Paulo II. Entendo ainda que o actual Papa é aquele que mais tem feito para a prevenção e repressão dos abusos sexuais de crianças na Igreja.
Contudo, a prática interna da Igreja face ao abuso sexual de crianças tem de mudar. Deve ser publicada uma orientação universal, clara e eficaz, para lidar com este crime horrível, obrigatoriamente executada por todas as instituições católicas. Antes que o Mal produza mais efeitos. Quando é a própria Igreja que está em julgamento.
Ecce homo!
Actualizações: este post foi emendado às 22:01 de 2-4-2010 e actualizado às 23:41 de 2-4-2010 e 0:39 de 3-4-2010.