sábado, 31 de janeiro de 2009

A vertigem, a voragem e a prioridade dos factos

Passado o interregno paisagístico desta semana nas minhas fotos de 2005 da bela paisagem de Sintra é altura de retomar a análise política. Antes satisfaço a curiosidade dos leitores, dizendo que a magnífica quinta que se vê nas fotos, na estrada de Janas, em Sintra, pertenceu alegadamente ao dr. Domingos Duarte Lima.

A situação política evoluíu aceleradamente esta semana e, em cada dia, sucede a vertigem das notícias, o escrutínio dos cidadãos, os desmentidos e defesa do PGR/DCIAP e a voragem do poder que as consome e enterra. Mais tarde, retomarei o radar das notícias sobre o caso Freeport, que continua a dominar a actualidade portuguesa. Por agora, apenas a minha nota sobre certos factos mais importantes dos últimos dias:
    1. A defesa pública do primeiro-ministro pela PGR/DCIAP. Para protecção das notícias sobre os factos gravíssimos da corrupção do caso Freeport e as referências ao alegado envolvimento de José Sócrates no escândalo, faz-se a defesa pública do primeiro-ministro, com revelação pública autorizada (!?...)de dados do inquérito, ilibando uns e apontado outros, alijando responsabilidades para as autoridades britânicas e justificando sucessivamente os sucessivos desmentidos. Creio que não se trata apenas de um caso político, mas que deve merecer a inadiável apreciação e consequência jurídica pelos órgãos judiciais competentes.
    Esclareço que a defesa pública do poder que refiro à PGR/DCIAP tem a ver exclusivamente com os desmentidos da implicação do primeiro-ministro no caso e não com a investigação.
    Mas os problemas maiores não decorrem, nesta aflição do momento, nos sinais desagradáveis na sugestão que inevitavelmente provocam, de chegar, como na entrevista à RTP-1 de 29-1-2009, da senhora procuradora-geral Cândida Almeida do DCIAP, ao cúmulo de usar a perigosa máxima de Pimenta Machado sobre a mentira e a verdade, ao mesmo tempo que se trata o primeiro-ministro por "o José Sócrates", numa penosa intervenção na sequência de outras.

    2. A degradante política do desmentido-aos-bochechos (ou need-to-know-basis) do primeiro-ministro José Sócrates. Mas José Sócrates não se demitirá: não quer e não pode. A sua queda apenas acontecerá nas eleições quando for vencido.

    3. A viragem das casacas dos servos e dependentes do poder nos media do campo socratino mais desavergonhado para a sugestão de demissão imediata do primeiro-ministro.

    4. O silêncio ou neutralidade das figuras meta-sistémicas socialistas (Soares, Almeida Santos, Sampaio, Vitorino) em aparente aliança com a campanha de Cravinho e outros para a remoção de José Sócrates do poder antes do congresso do PS.

    5. A convicção popular que se vai formando de que a acumulação do desemprego e depressão económica com a perda do lastro de rigor do primeiro-ministro levará ao colapso do poder socialista já nas eleições europeias de Junho.

Mas a análise é dispicienda nesta altura. O que é útil e prioritário é a revelação de factos, os tais que não são dependem da análise da perspectiva, da oportunidade ou da tecnicalidade jurídica. Os factos são o que são.


Limitação de responsabilidade (disclaimer): As entidades mencionadas nas referências e notícias dos media, que aqui comento, do inquérito português não são, que se saiba, suspeitas ou arguidas do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade e, mesmo se forem, gozam do direito à presunção de inocência até ao trânsito em julgado de sentença condenatória. Salvo referências indirectas indiscretas não é conhecido o estado do inquérito britânico ao caso Freeport e também aí vigora o mesmo direito de presunção dos eventuais suspeitos; e salvo referências indiscretas, não é conhecido o estado do inquérito português, devendo também guardar-se o direito de presunção de inocência de todos os referidos.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

A geração que passou

Com um agradecimento à Helena Matos das Blasfémias que indicou a data e copiou alguns excertos do artigo no Público de 24-9-2005 (via MacGuffin) e no Blasfémias (link indisponível), andava há tempo para conseguir transcrever o artigo completo do Prof. Doutor Manuel Rodrigues sobre Salazar publicado em 31 de Dezembro de 1938 no jornal O Século, faz agora exactamente setenta anos.

Porque se adapta à situação, que não apenas a um homem, nem sequer a um grupo, mas à forma de fazer política de uma geração (de um sistema!), aqui o trago. Uma geração de mentira, que ocupou o poder, mas nada sabia nem fez, senão a desgraça e abuso que se conhecem. Uma geração que já passou, mas resiste a passar.



Artigo do Prof. Doutor Manuel Rodrigues ("M."), ministro da Justiça, sobre Salazar[mantive a grafia do texto original]
" «Problemas sociais -
O Homem que passou»

M.
O Século, 31-12-1938, pp. 1-2

Parece o título de uma comedia ou de um drama; todavia, para ser comedia, falta-lhe a futilidade e a graça; e para ser drama, ainda que dêle haja a angustia, falta-lhe a singularidade. Coolus escreveu, é certo – Unne femme passa – e também na canção se diz que uma mulher passou. Em qualquer dos casos passou, não devia ter passado, mas enfim, bem ou mal, tudo ficou arrumado na peça e na canção. Aqui a história é outra. Alguns hão-de dizer que não se vê bem como possa constituir um problema social o homem que passou; e eu digo que não um só mas muitos problemas sociais existem no argumento.
*

Mas o que é o homem que passou? A Lacordaire, que foi tão grande orador, preguntaram um dia, quando a sua vida ia muito longa, porque já não falava e êle respondeu: cada homem tem o seu tempo, cada palavra a sua hora. Admirou o interlocutor a resposta que era ainda digna do espiritual e fulgurante orador, e deu-se por convencido. Ela, na verdade, contém tôda a filosofia do homem que passou e é a sua melhor definição. O homem que passou é aquele que desempenhou a sua missão, que a desempenhou bem ou mal, não importa, e já não pode desempenhar outra, nem prosseguir a que assumira. Se é orador, a sua palavra jámais será escutada; se é guerreiro, os soldados já não seguirão a sua espada; se é político as multidões não lhe obedecerão; e nunca mais o seu braço será procurado, nem o seu conselho pedido, e nem a sua voz desviará Francesca da leitura que ela tantas vezes interrompera.

O homem que passou é o homem que já não conta, o homem com quem o tempo não conta por lhe faltar a chama interior do entusiasmo ou o favor da opinião, estas duas energias sem as quais não é possível realizar uma obra ou prosseguir um destino.
***

Este destino de passar não sei se é um bem, se é um mal; mas talvez seja um bem, porque só do homem se diz com rigôr que passa e o melhor destino foi conferido ao homem.

Muitas vezes me sucede, ao contemplar qualquer das maravilhas da arquitectura do passado, esquecer-me do seu desenho soberbo, da sua traça maravilhosa, para só pensar naqueles que as ergueram ou nelas passaram a vida. As pedras estão ali, o tempo poupou-as, mas os que as carrearam, afeiçoaram e sobrepuseram e sob o seu abrigo viveram êsse levou-os o tempo. E, contudo, entre o homem e a pedra não há dúvida na preferencia; era o homem que sentia e criava… e foi a pedra que ficou. Aqui há um motivo para uma convicção e por isso me inclino para que seja um bem, bem para os outros e para êle mesmo. Cada homem que passa traz, na medida própria, o seu contributo ao mundo; enriquece-o com o esfôrço do seu braço e com a fulguração do seu cerebro e, quando o braço descai fatigado ou o cerebro já não fulgura, o seu contributo está prestado. Disse a sua mensagem e doravante a sua mensagem não sugestiona, perturba; a sua presença não anima, embaraça; e até a sua ternura não aquece, fatiga. E avanço mesmo em dizer que para êle próprio é um bem. Em um mundo em que tudo cansa também a vida cansa; mesmo quando se desenhou um alto ideal e êle se fez realidade, mesmo quando a fada que doba os fios da existencia os dobou sem os enredar. E ainda que haja em nós o sentido da imortalidade, êsse sentido só se compraz, não sei por que motivo, para lá da linha das sombras e na comunhão de todos os que amámos. Isto não quere dizer que não tenha alguma coisa de doloroso o passar antes do passamento. O sentir que se vai passar gera a melancolia, a tristeza em todas as coisas e não é de admirar que a gere no homem. Todos os dias o Sol morre e, embora saiba que vai ressurgir no dia seguinte, não morre sem empalidecer; ora o homem tem mais razão do que o Sol para se entristecer, porque o que para êle morre, mesmo que não seja com a morte, não ressurgirá. Talvez ainda haja para êle um pouco de luz, mas ela jámais será brasa, e as suas ilusões nunca mais a vida as tingirá de côres sugestivas. Mas para que o homem que passou empalideça ao passar não concorre só o sentir que a sua vida vai extinguir-se e já não incendiará ideias e paixões, concorre ainda o lembrar-se que o passar reage sôbre o seu passado, porque, quando passar, passará logo a consideração e a amizade.

O que até então fôra louvado será diminuído, o que fez de bom será atribuído aos outros, e se lhe mantém a autoria logo lhe desviam o objectivo; e onde houve o proposito de fazer por bem, logo dirão que o fez por mal, onde houve o maior desinteresse, logo lhe assinarão o melhor proveito.

O homem que passou é como o ano que passa. No momento mesmo em que corta a méta da eternidade, o ano que passou é mal querido e insultado. Começam a insultá-lo aqueles a quem não serviu, ainda que não tenha servido com razão, depois os indiferentes; e, atraídos ou sugestionados pelo clamôr, até aqueles mesmo a quem encheu de benemerencias. Só se distingue o homem que passou do ano que passa, em que êste já se perde[r] na eternidade quando o injuriam, não houve as injurias nem conhece as ingratidões; e o homem que passou é ainda vivo quando ouve a recriminação onde antes ouvia o louvôr e sente a ingratidão onde antes havia o agradecimento.
***

Passar é um destino do homem, que em regra a êle se submete, mas há quem não queira passar; ou melhor, quem não saiba determinar o momento em que passou. Ora a vida é um grande cortejo que segue cadenciado. Aquele que pretende deter-se põe em desordem o cortejo e gera a confusão, e por isso se descompõe nas atitudes com que resiste e perturba os que nele seguem. E então, onde houve louvores há agora censuras, onde houve carinho há agora aspereza e são até os que antes lhe abriram caminhos que o afastam agora com gestos desabridos.

O bispo era um grande, extraordinário orador. Na pujança do seu talento pôde pensar que um dia havia de vir a decadencia, mas êle queria abandonar o pulpito em plena glória para que na vida ficasse a fama da sua palavra vigorosa e sugestionadora e disse a Gil Braz: Tu, que és meu amigo, hás-de avisar logo que percebas que a minha eloquencia comece a declinar. Pouco depois sobreveio-lhe uma grave doença, mas quando se restabeleceu voltou ao pulpito. Foi ainda orador, todavia a sua palavra era já menos quente, a sua inteligencia menos vigorosa, a sua imaginação menos criadora, a impressão menos profunda. Tudo isto notou o confidente, mas não lho quis dizer. Talvez se tivesse enganado, talvez a acção da doença fôsse passageira. Falou novamente o bispo, mas o desastre foi completo. Do grande orador, só existia a pálida imagem do que fôra. Gil Braz pensou de seu dever avisá-lo, mas teve receio de o avisar. Todavia, a promessa que fizera com boa jura obrigava-o a falar e o proprio bispo exigia que lhe desse a sua opinião.

Com muitos rodeios, e com extrema delicadeza, Gil Braz disse-lhe que os dois últimos discursos, sendo ainda duas notaveis orações, se distanciavam muito das anteriores e revelavam um acentuado declínio. O bispo ouviu-o com serenidade, sorriu-se e, dizendo-lhe que êle não percebia nada de eloquencia, pois aquele fôra o seu melhor sermão, despediu-o com desprêzo e violencia. Aqui está o caso mais dramático do homem que passou. Porque com êle não é só o futuro que começa, é todo o passado que desaparece, pois todo êle passará a ser avaliado pelo presente. Aquele que não quere passar depois de ter passado, ainda ouvirá palmas, mas já não são palmas, são despedidas e não despedidas com saudades mas com ironias. As palmas são para o tempo, para que seja contente e caminhe mais rápido, para que mais depressa o leve.
***

Por acidente e só na aparencia, encontra-se ás vezes o homem que quere passar sem ter passado. Este desalento que anda pelo mundo e a todos toca, a algumas almas obsedia de tal modo que se deixam vencer antes de lutar. O pèssimismo, que em justa medida é necessário para dar um limite ás ambições, a-fim-de as tornar mais humanas, e efemeridade ás coisas para que as não amemos com preterição dos grandes deveres, veste-as cêdo das sombras do futuro e inunda-as de uma angustia que se impregna em cada uma das particulas do seu ser.

Esta angustia faz ver áquele que dela é preso, primeiro do que aos outros, a nuvem na linha do horizonte e, conhecendo-lhe a intenção dos elementos, definir-lhes a projecção. O que para os outros ainda é leve sombra, para êle já é sombra espessa, o que para os outros é ameaça, para êle já é realidade, e é por isso que o julgam com vida, quando já está morto, e presente quando já ausente.

E assim o homem com quem ainda se conta, mas com quem se não deve contar, porque êle já não tem fé e só com fé em si próprio se pode partir para a luta e oferecer combate.
***

Aqui está um pouco de história do homem e a história é sempre a mesma. Acabaste de a ler e vejo-te um sorriso, talvez ironico. Mas não sorrias porque a tua história não é diferente. Ainda ontem o teu rosto tinha o viço da mocidade e os teus olhos o brilho de uma féerie. A primavera em flôr da tua vida era uma bela promessa que alarmava os corações e neles desenhava sonhos, quimeras, esperanças e já hoje no teu rosto se fixa a palidez do futuro, e nunca mais os teus olhos farão renascer o romance sem palavras da paixão ardente, violenta. E, agora, verás que onde houve gentilezas haverá impertinencias, onde houve solicitações haverá enfados. E que o mesmo tempo que leva na sua roda celere o momento do homem, leva também a tua hora, e um dia serás para os outros uma sombra que se esbate e para ti mesmo uma saudade que se adensa.

......................................................................................................M."


Pós-Texto: Mantive a grafia do texto original, mesmo se em 2008, dois acordos ortográficos depois, nos parece estranha. Fique claro que o conceito de geração aqui empregue não significa conjunto de pessoas da mesma idade, mas coorte de poder e estilo, sub-divisão de indivíduos que nasceram mais ou menos mesma altura e partilham a mesma experiência abusiva no poder, não pretendendo atingir a generalidade de pessoas isentas e escrupulosas suas contemporâneas.


Actualizações: este post foi emendado às 9:39 de 31-12-2008.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A influência da Maçonaria na III República portuguesa

Dos sculptores lapidum liberorum (canteiros de pedras livres) dos grémios da maçonaria operativa (que em 1425, no manuscrito Mathew Cooke punha como primeira regra, "whosoever desires to become a mason, it behoves him before all things to [love] God and the holy Church and all the Saints"...) resta a simbologia que veio a ser usada pela maçonaria especulativa organizada na criação da Grande Loja de Londres na taberna Goose and Gridiron. Das Constituições de Anderson de 1723 às alegadas acções condenadas dos frati neri da P2 vai a diferença da regra para o abuso. Porém, pelo meio do aperfeiçoamento pessoal chega-se ao deslumbramento do poder. À parte as concepções que têm consequências práticas, o problema maior não é o desbaste especulativo da pedra livre nas pranchas filosóficas, mas as decisões de poder tomadas pelos irmãos que condicionam a democraticidade e transparência franca das sociedades.

Também em Portugal.

Em Portugal, a Maçonaria foi alargando, ao longo da monarquia decadente tardo-oitocentista e novecentista, um poder que parecia ter culminado na I República.

Salazar, que teria informação abundante da polícia política, jantava com o seu amigo Bissaya-Barreto (singularmente exaltado por José Sócrates em Coimbra em 26-11-2008) às quartas-feiras e, apesar da perseguição formal e da interdição assinada por Carmona (!...), tolerou-a.

A Revolução, quando chega, não é liderada pelas conspirações dos braços cruzados dos ritos dos irmãos nas lojas de casas finas ou pela inércia burguesa dos grupos de Budas sentados de Paris, mas pelos capitães curtidos no combate face às kalaschs, RPG-7, morteiros, minas e strellas, que tinham visto a sombra da derrota nas selvas e savanas de África.

Mesmo assim, políticos que eram os seus membros, a Maçonaria reorganizou-se e infiltrou-se na nova sociedade política. Da reduzida expressão e implantação que teria a Maçonaria portuguesa em Abril de 1974, vai acumulando adesões com a justificação da necessidade de organização secreta democrática anti-comunista e anti-fascista. Uma espécie de Organizzazione Gladio à portuguesa.

Depois do 25 de Abril, o poder da Maçonaria cresceu num ritmo exponencial. E cresceu sem oposição. Quem lhe podia resistir tinha perdido força e vontade. E quem lhe podia resistir era a Igreja. Na Igreja (aqui considerada como hierarquia e povo de Deus), considere-se principalmente a Igreja diocesana e das ordens, Opus Dei, Companhia de Jesus e, mais tarde, Renovamento Carismático.

A Igreja, diocesana e das ordens, passou à defesa pela manutenção do seu reduto de proselitismo e influência local.

A Opus Dei, que tinha a vantagem da integração de leigos e disciplina rígida, e que tinha conseguido certo ascendente sobre o marcelismo com o fornecimento de quadros e depois ainda, com nova geração de quadros, no cavaquismo, acabou engolfada pela ânsia de liberdade dos seus membros, a recusa de novas adesões ao seu regime espartano pelos jovens da geração da internet e da geração Hi5, e a escandalosa promiscuidade politico-económica de elites suas com o nóvel poder maçon. Se não os podes vencer, alia-te a eles...

Os jesuítas concentraram-se na formação moral de universitários e nas missões de África e América Latina.

E os novos movimentos eclesiais, nos quais avulta o discreto e apolítico Renovamento Carismático, dedicam-se à oração e transformação pessoal.

Os católicos não conseguiram reagrupar-se institucionalmente em organizações da sociedade civil e nos partidos criados, de Freitas do Amaral e Sá Carneiro, nem depois, apesar de alguns episódios e momentos.

O ultra-conservador heterodoxo Diogo Freitas do Amaral, saltou, por cima de insucessos eleitorais, de instrutor do processo José Ribeiro dos Santos a apoiante de Mário Soares, do corporativismo à esquerda anti-imperialista, de católico tradicionalista a ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates!...

Francisco Sá Carneiro, mentorizado pelos dominicanos (com Frei Mateus e Frei Bento Domingues), fascinado pela teologia moderna, confrontado no seu conservadorismo familiar da burguesia portuense pelas luzes do liberalismo, pressionado na sua independência pelos cortesãos e aristocratas da capital, suspenso da formalidade portuense nos saraus do Botequim de Natália Correia, dividido entre os olhos de Isabel e o esquife de Snu, viu-se desafortunadamente apertado entre a sua militância católica, uma mulher e o povo.

Sá Carneiro morreu numa noite de névoa e, com ele, a esperança reformadora da Aliança Democrática. Freitas, uma reencarnação idiosincrática do marcelismo, desiludiu-se com os resultados eleitorais e saltando, sobre o centro prometido, aliou-se à esquerda.

Os sucessores não resolveram o problema de identidade e representação. Balsemão era espúrio à base eleitoral do PSD e Adriano foi já um ocaso caprichoso, depois de em 1968 ter sido preterido pela suposta ousadia marcelista. A seguir veio a austeridade cavaquista e o desenvolvimentismo europeísta, combatidos pelos jovens turcos de Monteiro, manipulados no PP e no semanário Independente por Paulo Portas e, indirectamente, por Marcelo Rebelo de Sousa.

E se Cavaco, católico, até chegou a favorecer um sector tecnocrático de formação Opus Dei, e o acolheu à sua protecção mais tarde, não consequiu conter o crescendo do poder maçon, que aumentou as adesões na proporção directa do agravamento da crise economico-social. Já Portas, heteroxo, e político, para a sua ascensão e consolidação aliou-se a sectores da Maçonaria regular, mal compensados pelos jovens católicos aristocratas, numa mistura na qual o povo cristão não se revê. Depois, o heterodoxo Marcelo Rebelo de Sousa, que se demitiu depois de um conflito pessoal com Portas, aproximou o PSD da Doutrina Social da Igreja, à qual o papa João Paulo II retirou o estatuto de ideologia quando escreveu a Carta Encíclica Sollicitudo Rei Socialis de 30-12-1987:
"A doutrina social da Igreja não é uma «terceira via» entre capitalismo liberalista e colectivismo marxista, nem sequer uma possível alternativa a outras soluções menos radicalmente contrapostas: ela constitui por si mesma uma categoria. Não é tampouco uma ideologia, mas a formulação acurada dos resultados de uma reflexão atenta sobre as complexas realidades da existência do homem, na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial. A sua finalidade principal é interpretar estas realidades, examinando a sua conformidade ou desconformidade com as linhas do ensinamento do Evangelho sobre o homem e sobre a sua vocação terrena e ao mesmo tempo transcendente; visa, pois, orientar o comportamento cristão. Ela pertence, por conseguinte, não ao dominio da ideologia, mas da teologia e especialmente da teologia moral."

Os seguintes não desatam o nó górdio da dependência: Marques Mendes negoceia, Menezes entende-se e Manuela Ferreira Leite não tem poder suficiente para alterar a relação de forças, desproporcionada, como quase tudo hoje em Portugal, pelas vergonhosas pusilanimidade e promiscuidade das elites e pela (ainda...) abulia do povo.

Num mundo em convulsão, em que a anomia é uma ameaça insuportável para o homem, os aflitos moralmente à deriva recorrem às corporações secretas, como ocorreu na transição da Idade Média para a modernidade, para obter protecção e promoção. Quando a sociedade se abre, as elites fecham-se... São cantos de cisne das forças realmente anti-democráticas, inigualitárias, segregacionistas. Quando mais a crise apertou, mais cresceu o recrutamento e menos possível se tornou a acção política fora da irmandade. A iniciação maçónica tornou-se uma espécie de passaporte para o exercício político. O domínio político da Maçonaria em Portugal é hoje quase completo, sobrando apenas uma ou outra aldeia de Astérix no meio do império galo-escocês-maçon.

Depois de recrutar pacientemente os líderes, foi mais fácil engrossar as hostes. E quem incha, degenera. Da austeridade republicana clássica que não admitia sequer diferentes orientações sexuais, chegou onde sabemos, onde toda a sociedade política sabe. Em vez de podar os ramos podres, com a firmeza que os seus princípios impõem e o País precisava, preferiu escondê-los na sala, debaixo da carpete do salão, fingindo que não há homens e mulheres em Portugal que perceberam claramente o volume, o cheiro e as movimentos debaixo do tapete. Mais ainda: a perplexidade dos homens de bem informados é que não consta um só protesto de qualquer dos seus membros pela cobertura do lixo. Não sabemos se houve, que a organização é secreta, mas não consta... O que sabemos foi que houve homens insuspeitos que decidiram varrer o lixo para debaixo do tapete da loja - e nessa tarefa se sujaram e feriram a dignidade da própria organização. Quanta porcaria vale a manutenção de um regime!...

O panorama político institucional da Maçonaria é diverso, mas as tonalidades são marginais. No tradicional Partido Socialista, onde raro é o membro dirigente masculino que não é maçon (além de que a Maçonaria feminina tem aumentado muito o seu recrutamento e há também lojas mistas) - e quem não frequenta agora as sessões, ou obteve um formal atestado de quite (demissão), não deixa de ser quem foi... -, no PSD, onde penetrou pela facção histórica republicana e os negócios, no CDS onde foi, no final dos anos setenta, a principal fonte de recrutamento político e onde é historicamente (!) uma facção muito poderosa. Já o PC concorre com a Maçonaria e os seus membros não pertencem à organização. E os militantes tradicionais do Bloco de Esquerda tinham no trotskismo também uma mundividência distinta - embora o partido não tenha evitado o entrismo de socialistas maçons desiludidos do PS.

A criação da Maçonaria regular do chamado rito escocês em Portugal, permitiu um grupo, heteroxo nos seus objectivos, mas que acolhe também um sector radicalmente anti-cristão muito activo, alternativo à tradicional Maçonaria irregular portuguesa de rito francês, definida, desde sempre, pela sua oposição tripal à Igreja Católica. Mas nenhuma das facções conseguiram resolver com consenso, ou até tratado de paz, a preponderância socio-política, nem sequer as suas guerras intestinas.

Acredito que muitos maçons tenham aderido à organização por causa dos seus princípios filosóficos de livre pensamento e até do sonho de fraternidade. Não falo do ritual elitoclórico porque os seus membros, se sentem-se confortáveis com a sua prática, devem ter a liberdade de o manterem e não serem diabolizados por isso. O que me separa da Maçonaria - se é que me separo de qualquer outro membro do mesmo género humano a que todos pertencemos -, além da divergência ideológica, é o secretismo da organização, a sua falta de escrutínio e o favorecimento dos irmãos sobre os demais cidadãos, mais grave na ideia de desprezo orgânico pela lei do Estado e as suas instituições. Isto é, os seus princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, acabam por ser fins de subordinação da sociedade em vez de serem princípios de subordinação própria à sociedade. Ora, todo o homem é irmão de qualquer outro, pois pertencem ao mesmo género: não é moralmente admissível a submissão de outro homem só porque não possui a mesma condição secreta elitista. Nem é legítimo do ponto de vista democrático esconder dos eleitores a condição decisiva de maçon - ou a pertença a outras organizações secretas ou discretas.

Não está em causa, nem pode estar, a livre pertença à Maçonaria ou a livre participação nesta organização. Compreendo que a influência da Maçonaria em Portugal tenha chegado ao cúmulo de levar o Oitavo Congresso dos Juízes portugueses a estabelecer, em 23-11-2008 na Póvoa de Varzim, um "Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade" onde se recomenda "O juiz não integra organizações que exijam aos aderentes a prestação de promessas de fidelidade ou que, pelo seu secretismo, não assegurem a plena transparência sobre a participação dos associados", como a Maçonaria, o que José Maria Martins aplaude - mas já me conformaria com a informação pública (ou registo de interesses) de pertença dos magistrados, de políticos e de outras funções de Estado, a esta organização ou outras.

Todavia, aquilo que percebemos na evolução da humanidade é que o actual domínio quase-absoluto é a véspera do estertor desse comando. Vivemos uma era de escrutínio e liberdade; o secretismo da Maçonaria é uma espécie de resistência última à incerteza da liberdade e à competição do mérito. Como veio, o domínio político quase-absoluto da Maçonaria sobre a política portuguesa vai. Não irá apenas na torrente da evolução tecnológica, que já é decisiva, mas pelo reerguer da vontade livre e clara dos portugueses.


Actualizações: este post foi emendado às 16:06 de 9-12-2008.

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Honra

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Amanhã e depois de amanhã, 2 e 3 de Setembro de 2008, terça e quarta-feira, pelas 9:30 da manhã, realizam-se no Tribunal da Boa-Hora (3.ª Vara Criminal) em Lisboa, a quinta e sexta sessões do meu julgamento, perante um colectivo de juízes, por 49 crimes de difamação por queixa intentada por Paulo Pedroso relativamente a posts que escrevi neste blogue Do Portugal Profundo sobre o caso de abuso sexual de crianças da Casa Pia. As sessões são públicas.


Actualizações: este post foi emendado às 12:57 de 1-9-2008.

sexta-feira, 4 de julho de 2008

Os Silvas

(este post foi originariamente colocado às 11:51 de 2-7-2008 e é agora actualizado)


Imagem picada daqui


Alertado por um amigo sobre factos e relações*, neste post, vou tentar demonstrar a ligação Partido Socialista-Carvalho da Silva, a emergência da facção ex-férrica no PS montada na aliança com Carvalho da Silva e o consentimento da preponderância dessa facção por José Sócrates. Por fim, descrevo cenários e concluo por um caminho.

Divido.


A (in)dependência de Carvalho da Silva
Começo por Carvalho da Silva. Manuel Carvalho da Silva nasceu em Viatodos, concelho de Barcelos, em 2 de Novembro de 1948, filho de João Alves da Silva e Margarida Gomes de Carvalho. De acordo com a sua biografia, é secretário-geral/Coordenador da CGTP-Intersindical (CGTP-IN) desde 1986.

Licenciou-se em Sociologia em Julho de 2000 no ISCTE e doutorou-se na mesma área científica, na especialidade Sociologia das Classes, da Estratificação e dos Movimentos Sociais, em 13 de Julho de 2007, com a apresentação da tese "A Centralidade do Trabalho e Acção Colectiva - Sindicalismo em tempo de globalização", orientada pelo Prof. Doutor António Firmino da Costa (ISCTE-CIES) e Prof. Doutor Manuel Carlos Silva (Universidade do Minho), com 501 páginas. A tese foi elaborada entre 2001 e 2007. Datada de Abril de 2007 foi rapidamente discutida três meses depois.

A tese de Manuel Carvalho da Silva fornece algumas pistas do seu heterodoxo posicionamento. Há uma vontade do autor de apresentar o seu percurso pessoal, profissional e sindical na introdução da tese.

Aí, na página 9 da tese, afirma a "formação e vivência católica da família" e a sua participação "embora não muito intensa" (sic) "em actividades da juventude agrária e juventude operária católicas" e cita a importância da encíclica Rerum Novarum de Leão XIII. Depois, indica que se tornou "operário" (sic) "numa oficina de reparação de electrodomésticos" no Porto, após o Curso Industrial e "frequência do curso de montador-electricista". Com recurso à sua biografia oficial, colhe-se a informação de que fez Curso Industrial na Escola Industrial Carlos Amarante, em Braga.

De acordo com a resenha de vida que faz na introdução da tese, refere que, depois, fez a guerra colonial e regressa ao continente. Em Abril de 1972 recomeça a trabalhar, mas é despedido de "quadro intermédio" de uma empresa em Setembro de 1973, "após ter reagido a actos prepotentes de um gestor". Em 1974, a trabalhar na Electromecânica Portuguesa Preh, incentivado por colegas, começa o seu percurso de sindicalista.

Ainda na tese, verifica-se de forma heterodoxa os notórios da esquerda como Bourdieu, Touraine, Castells, mas também Anthony Giddens, o teórico da terceira via, além do incontornável Max Weber (5 livros). Nos portugueses, destaco: António Barreto (9 livros); o católico Manuel Braga da Cruz (3 livros); António Monteiro Fernandes (5 obras), ex-Secretário de Estado do Trabalho no primeiro Governo Guterres (1995/97), presidente da Comissão do Livro Branco das Relações Laborais, encarregada de preparar a revisão do Código do Trabalho (2006/2007) e consultor da Correia, Seara e Associados; Boaventura Sousa Santos (vários); a secretária de Estado, esposa de Vital Moreira, Maria Manuel Leitão Marques (1 obra); e o ministro Augusto Santos Silva (3 livros") sobre quem diz "Neste sentido partilho do posicionamento de A. Santos Silva, de que o entrecruzamento das coisas não dispensa os procedimentos da distinção conceptual" (p. 9); e ainda o sector ex-férrico. No sector mais à esquerda, além de Marx (4 livros), Lenine (4 livros) e duas obras do Partido Comunista Português, nota-se apenas um texto policopiado de Álvaro Cunhal ("CGTP-IN - 25 Anos com os Trabalhadores - Raízes. Percurso. Actualidade", 1995), em comparação com o heterodoxo Luís Sá (5 livros) e o "ex" José Barros Moura (3 obras). Realce ainda para a inclusão do livro da actual ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues, "Sociologia das Profissões", Celta Editora, Oeiras, 1998.

A tese, bem escrita, é um trabalho sério, que contém três estudos de caso (Grundig/Blaupunkt; Nova Penteação; e Portugal Telecom) e capítulos sobre a CGTP-IN, a evolução da União Europeia e o Conselho Económico e Social e, por fim, sobre regulação e regulamentação das relações laborais, contendo ainda trabalho de campo com parte quantitativa, o que a valoriza.

Não consta onde fez o 6.º e 7.º ano do Liceu (ou 10.º, 11.º e 12.º ano de escolaridade), necessários para entrar na universidade - mas mesmo que, por hipótese, tenha entrado para o ISCTE sem o 12.º ano e através um exame ad hoc, isso seria perfeitamente legal e legítimo. Diferente do percurso normal, no comunista Carvalho da Silva é ele seguir a estratégia trotskista de queimar etapas: galgando directamente da licenciatura ao doutoramento, sem passar pelo mestrado - o que, mesmo assim, continua a ser legal, se bem que menos linear, pois já existiam mestrados em Sociologia, e no próprio ISCTE, nessa altura.

De que vem, contudo, a propósito a biografia pública de Manuel Carvalho da Silva? Da política.

No PC a independência profissional é motivo de desconfiança porque corresponde à autonomia económica, fugindo quem a ganha ao controlo de subsistência de quem manda. Qualquer tentativa de independência profissional, como conseguir acesso a uma profissão exterior ao partido, é vista como é: uma vontade de independência política, um movimento de fuga ao controlo do centralismo democrático. Normalmente, é um caminho sem retorno. O doutoramento é a garantia de que, se for perdida a posição ou o vínculo, o seu detentor sobrevive com um estipêndio razoável como professor ou noutra área. O doutoramento é, então, perigoso.

A controvérsia da posição política de Manuel Carvalho da Silva não é de agora. Serve lembrar a convicção do poder no PC, e as notícias filtradas para a imprensa nessa altura e depois, que o arrumaram junto ao sector do Grupo dos Seis e mais tarde dos plataformistas. Nem é preciso evocar a sua militância católica acima mencionada, na JAC (Juventude Agrária Católica) - onde militou bem antes das tentações radicais que assolaram a JARC nos anos tardo-revolucionários - e na JOC (Juventude Operária Católica), que fez D. Januário Torgal Ferreira apresentar o seu livro "Trabalho e Sindicalismo em Tempo de Globalização" em 13-11-2007.

Carvalho da Silva ficou no PC, mas na margem e, por isso, nunca foi opção interna para suceder a Cunhal, nem a Carvalhas. Uma vez marcado como malhado, tem o destino traçado. Na verdade, não existe PC além da ortodoxia - a não ser como transição para a social-democracia de direita, como a travessia do PCI ao Partido Democratico. A independência de Carvalho da Silva face ao PC é, ao mesmo tempo, a sua dependência do PS.


O ISCTE: os Silvas, Rodrigues e Sócrates
Manuel Carvalho da Silva é, segundo o Expresso de 19-4-2008, o interlocutor do ministro Vieira da Silva - e ainda da ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues e do primeiro-ministro José Sócrates no acordo (concluído em 11-4-2008) do Governo com os sindicatos de professores (o sindicato da UGT nem foi preciso na reunião...). O contacto é o professor do ISCTE, o organizador frio e diplomata, José António Fonseca Vieira da Silva (que, sintomaticamente, não é referido na tese de 2007). Para vergonha da luta genuína dos docentes, através de vários protestos e da Marcha da Indignação que juntou 100 mil professores em Lisboa (onde Carvalho da Silva faz questão de discursar...), o acordo de mão-cheia-de-coisa-nenhuma, sem contrapartida séria do executivo, entre os sindicatos e o Governo foi celebrado: Carvalho da Silva vendeu os professores ao Governo e o PC aceitou - o PC podia não ter aceite e nenhum acordo seria feito. Só não se sabe se desta vez se brindou o acordo com vinho do Porto, como fizeram Torres Couto e Cavaco...

Vieira da Silva, Maria de Lurdes Rodrigues, José Sócrates, Carvalho da Silva. Em comum têm a ligação ao ISCTE. Vieira da Silva e Maria de Lurdes Rodrigues são originariamente ali docentes (e Maria de Lurdes até ganha, como se apontou acima, uma citação na tese de Carvalho da Silva); José Sócrates fez lá a sua "Pós-Graduação em Gestão de Empresas designada por MBA" (sic); e Carvalho da Silva fez lá a licenciatura e o doutoramento. Tudo em família.

António Costa é um parente afastado, sem família própria, que não faz parte deste filme negro: pode ser convocado para representar, mas apenas temporariamente, os interesses da família ex-férrica.

Entretanto, há mais duas pistas a seguir: a da facção ex-férrica do PS e a do PC.


O PC e Carvalho da Silva
Comecemos pelo PC. Perdido o poder funcional de representação do grande operariado, pela falência, deslocalização e reconversão da indústria para o comércio e nos serviços, onde a dicotomia trabalho-capital pouco sentido faz, e reduzido o sector dos trabalhadores rurais alentejanos, agora reformados, resta ao PC a frente sindical. Mas a frente sindical também está batida pela transformação do mundo do trabalho: os trabalhadores com contratos a prazo, recibos verdes e desempregados, não se sentem representados pelas direcções sindicais que servem principalmente quem lhes paga as quotas - os trabalhadores efectivos e funcionários públicos, com contratos sem termo - e os partidos políticos de que dependem, por vezes, num promíscuo trampolim para postos governativos.

É neste enquadramento que se desencadeia a luta cada vez mais larga dos professores, afectados na carreira, na profissão e na função, pelo delírio didáctico-pedagógico do Ministério da Educação. Como não confiam nos sindicatos que celebram acordos de trocos com o Governo pela conformação da classe, os professores começam a manifestar-se de forma variada, espontânea e autónoma às estruturas sindicais, surgindo a ameaça de criação de sindicatos independentes e de retoma da unidade de uma Ordem de Professores independente dos partidos políticos. Os sindicatos e os partidos de que dependem, PC e PS, apercebem-se do perigo, surfam a onda e instrumentalizam a luta para benefícios próprios: consolidação da Fenprof-CGTP como principal força sindical dos professores e contestação governativa ao Governo pelo PC; e defesa partidária do governo pela FNE-UGT. O PC aceitou a possibilidade do acordo CCTP-Governo sobre os professores para partir os dentes ao sindicalismo independente que ameaçava nascer, ainda que o acordo lhe desagradasse pela confluência de Carvalho da Silva com o PS.

Todavia, o efeito dos sais de fruto não é duradouro para resolver o problema da azia provocada pela ingestão do heterodoxo Carvalho da Silva. O PC quer substituí-lo há tempo, mas não pode provocar uma ruptura com ele. Manuel Carvalho da Silva tem 59 anos (nasceu em 2-11-48) e não é provável que queira reformar-se tão cedo: no partido a que ainda pertence, tradicionalmente dirigido pela gerontologia, ele ainda se verá como um jovem. Além disso, na CGTP, nos seus 22 anos de reinado, criou um grande grupo de seguidores, principalmente junto das tendências católicas e não-comunistas da central sindical. Uma ruptura com o PC teria um efeito incomparavelmente maior do que a do Grupo dos Seis ou da Plataforma de Esquerda.

O PC prefere a prudência face ao aventureirismo da ruptura com Carvalho da Silva. Substituir Carvalho da Silva na liderança da central, contra a vontade deste e do seu grupo, poderia levar à organização de uma força sindical intermédia, autónoma, que assegurasse o grosso dos dirigentes e sindicalistas e partisse o próprio PC. E, sem sindicatos fortes, o PC definharia.

Em vez do enfrentamento em campo aberto, que podia ter forçado no XI Congresso da CGTP-IN em Fevereiro de 2008 (novo congresso só em 2012), a direcção do PC prefere o combate de erosão. Agora, o PC já está liberto da ameaça de criação sindicalismo independente dos professores que depreciaria a sua força sindical. Um sindicato independente é um perigo, pois defende e promove os interesses da classe profissional em vez das necessidades da central sindical e do partido que nele manda. Então, o PC age para travar a aliança Carvalho da Silva-PS, intermediada pela facção ex-férrica, que lhe prejudica o resultado eleitoral acima dos 10% que espera na próxima votação do Outono de 2009 e que a sondagem Intercampus/TVI de 27-6-2008 (10,1%) já regista. Como faz? A propósito do novo Código Laboral, o PC provocou o endurecimento da luta contra o executivo, através da linguagem mais áspera e das manifestações de rua, encostando Carvalho da Silva e reduzindo a sua margem de acção, inviabilizando o acordo com o Governo PS no novo Código do Trabalho (apesar da abstenção nuancée). O PC forçou até o próprio Carvalho da Silva a empregar uma linguagem mais violenta face ao Governo nos seus discursos e intervenções.


A facção ex-férrica do PS e Carvalho da Silva
A facção ex-férrica do PS é considerada da ala esquerda, mas na verdade, à excepção dos costumes, é tão capitalista como as demais. Na verdade, o que a determina não é a posição anti-capitalista - quem é anti-capitalista não junta capital! -, nem sequer ideológica, mas o controlo e exercício do poder total. A posição variará conforme lhe seja conveniente: mais à esquerda ou mais... à flexi-segurança...

Esta facção tem acumulado poder por três motivos: a extraordinária organização de favores, dependências e lealdades próprias, para o que conta com o rico Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social, que lhe foi distribuído na reconquista do Estado em Fevereiro de 2005 (o PS, e José Sócrates, como secretário de Estado, ministro e primeiro-ministro, deteve o poder durante onze dos últimos treze anos); a política capitalista de José Sócrates, prosseguida mesmo num contexto de crise económica grave e crescente; e a aliança com Carvalho da Silva. Contudo, esta aliança com Carvalho da Silva não é nova: na época dura, ele foi solidário.

Por causa do estado de necessidade do Governo, com um índice de aprovação em queda, devido ao fecho de empresas, ao desemprego, à emigração e ao endividamento e empobrecimento das famílias, e à forte contestação sindical e popular, o ultra-liberal José Sócrates tolera até a assunção pública da tendência ex-férrica. Além do faz-que-anda-mas-não-anda de Manuel Alegre, a tendência ex-férrica é consequente: tem poder, demonstra-o e usa-o. O líder não se pode expor - e Vieira da Silva não tem voter-appeal. Assim, precisa de se montar em António Costa para tomar o poder do PS e, a seguir, do País, quando Sócrates cair corroído pela aceleração do agravamento da crise económica. Essa táctica não os preocupa: estão habituados a trabalhar na sombra.


Conclusão

O ponto fraco da estratégia da facção ex-férrica, e do próprio José Sócrates, é também o seu ponto forte: o controlo do iscteano Carvalho da Silva.

Sócrates e o PS precisam de Carvalho da Silva para lhes neutralizar a contestação substancial à esquerda e conseguir acordos com o Governo, de modo a que o PC e o Bloco não façam em conjunto os 25% que lhes faria perder as eleições daqui a quinze meses.

A facção ex-férrica carece, entretanto, da aliança com Carvalho da Silva como salvo-conduto para passar pelas linhas socratinas e afirmar a sua força no PS. Se Sócrates perder as eleições - como creio há meses -, é provável que, falhando a táctica funcional que esta serve (neutralização do poder eleitoral do PC e do Bloco), resulte a estratégia de tomada do poder no PS. O País virá depois e a facção, por outros motivos, até precisa de ganhar tempo.

Se, e só se, Sócrates, ganhar com maioria absoluta, o que a conjuntura económico-política não vai consentir, destronaria a facção ex-férrica do rival, por esta ter alcançado um poder que o ameaça. Mas se Sócrates ganhar com maioria relativa continua a necessitar da facção ex-férrica para o acordo à esquerda com o Bloco, um partido que tem, há muito um pacto do Diabo com ela.

A hipótese de ressurreição pós-eleitoral do Bloco Central PS-PSD pode pôr em causa a tomada do poder interno no PS pela facção ex-férrica. Esse acordo é desejado pelos empresários ameaçados pela Operação Furacão, e outros grandes casos; é acarinhado pela promiscuidade político-capitalista que teme a maior autonomia do poder judicial face ao poder político, de que é expoente a procuradora Maria José Morgado; e é apadrinhado paradoxalmente pelo presidente Cavaco Silva, que precisa dos socialistas no poder para capitalizar à direita o descontentamento e neutralizar a força do candidato Manuel Alegre.

Todavia, a viabilidade de um Bloco Central, como em 2005 na Alemanha, com Manuel Ferreira Leite na posição de Angela Merkel, também implica o afastamento de José Sócrates do Governo como aconteceu com Gerhard Schröder...

Mas não é só a linguagem esquerdista da facção ex-férrica que seria obstáculo para a sua inclusão no Governo: se esse léxico radical seria rapidamente substituído, existe o problema de António Costa, líder provisório da facção, que já troca convites com Rui Rio, o número dois do PSD, não pretende trocar o lugar de presidente da Câmara Municipal de Lisboa por vice-primeiro-ministro, tendo de se encontrar um suporte de menor influência; e de Cavaco não querer certos nomes manchados no poder. Isto é, o mais provável se o PSD ganhar as eleições, como prevejo, é a solução Sarkozy com o governo Fillon: um governo abrangente dito de Salvação Nacional, com a inclusão de algumas personalidades independentes e algum actual militante socialista.

A chave das eleições de 2009 está na aliança ex-férricos/Sócrates/Carvalho da Silva. A táctica a empregar para romper esta tríplice aliança é denunciá-la já. Exposto o uso de Carvalho da Silva, liberta-se o PC, reduz-se a força da facção ex-férrica no PS e isola-se Sócrates que, então, perderá as eleições de 2009.

E os Silvas acabam, eles próprios, picados na sua ousadia das rosas: Vieira voltará para a sua concha e Carvalho partirá para o bosque da memória.


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* Sobre o assunto de base - o entendimento iscteano de 11-4-2008 - veja-se ainda: o Expresso de 19-4-2008 ("Carvalho da Silva foi sensível à argumentação do primeiro-ministro", na notícia de que o acordo entre a Plataforma Sindical dos professores e o Governo foi conseguido por Vieira da Silva e Carvalho da Silva); e a evidência da relação iscteana pelo atento Prof. Ramiro Marques e por José Xavier no Satyricon e ainda num mail publicado no BlogEscolaPública por Paula Montez. O negócio da venda dos professores foi aqui analisado em post de 12-4-2008.


Actualizações: este post foi emendado às 21:40 de 3-7-2008 e actualizado às 21:54 de 4-7-2008.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

GPS, educação e escola pública


(actualizado)



O Grupo GPS, SGPS, S.A., que detém a G.P.S. - Educação e Formação, S.A. (GPS é aqui o acrónimo de "Gestão de Participações Sociais" - Diário XXI de 14-12-2006), foi criado em 2003, a partir da GPS - Educação e Formação, e está sediado no Louriçal, Pombal, possui e opera vários colégios e escolas profissionais, principalmente na região Centro. Para além da sua área nuclear, a educação e formação, na qual está em grande expansão, a holding GPS, SGPS, S.A., integra "mais de meia centena de empresas na área do imobiliário, serviços (onde integra empresas do turismo)", como se pode comprovar no seu organograma (clicar em Mapa GPS e depois em Organograma), e continua em forte crescimento da sua actividade, conforme se pode verificar num motor de busca.

A GPS, SGSP, S.A., é uma sociedade gestora de participações sociais e está matriculada na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Pombal com o número de pessoa colectiva 506 607 062. A G.P.S. - Educação e Formação, S.A., está também matriculada na Conservatória do Registo Predial e Comercial de Pombal com o número de pessoa colectiva 507 177 630, e é uma sociedade anónima, com acções nominativas e ao portador. O seu líder, que ocupa o cargo de Presidente do Conselho de Administração da SGPS e da sociedade anónima, é António Jorge Freire de Brito Calvete, "antigo deputado do PS" (segundo notícia do JN de 17-3-2008, via O Sexo e a Cidade, link original fornecido pelo JPG do Apdeites na caixa DPP). Além da sua ligação ao ensino básico e secundário, também terá estado ligado ao ensino superior: segundo o CM, terá alegadamente gerido também a "Escola Universitária Vasco da Gama, em Coimbra (EUVC), durante o período (...) 2004/2005".

Expande-se o ensino privado pelo básico e secundário e mirra a escola pública...

Do Portugal Profundo escrevo sempre com a preocupação da verdade - factos-factos-factos! - e, por isso, não afirmo, nem publico, o que não confirme. Portanto, coloco uma pergunta, em nome da transparência e escrutínio de cidadania no sensível sector da educação: haverá algum público e notório defensor da escola pública que seja accionista das sociedades GPS, SGPS, S.A./G.P.S. - Educação e Formação, S.A. ou das suas participadas?


Nota: Como sempre procuro fazer, contactei hoje, 27-6-2008, a GPS, SGPS, S.A./GPS-Educação e Formação S.A., mas não foi possível falar até este momento com nenhum responsável do grupo. Se entretanto, obtiver alguma resposta para a questão acima, publicá-la-ei.


Pós-Texto (14:35 de 28-6-2008): O grupo GPS - Educação e Formação tinha no final de 2006, "mais de 10 mil alunos", segundo o seu líder António Calvete, no III Fórum GPS - Educação e Formação em 4/5-9-2006 na Escola Internacional de Torres Vedras perante cerca de 800 professores do grupo. A Escola Internacional de Torres Vedras do grupo GPS foi inaugurada em Setembro de 2005 com direcção pedagógica ("gestor educacional") do dr. José Maria de Almeida, ex-director regional da Direcção Regional de Educação de Lisboa (DREL) em 2004/2005 e agora indicado, em 13-6-2008, como "supervisor pedagógico do grupo" GPS (SIC, 26-6-2008), na apresentação da Escola Internacional da Covilhã que abrirá em Setembro de 2008.


Pós-Texto 2 (22:33 de 30-6-2008): A expansão territorial do grupo GPS no ensino básico, secundário e profissional, parece seguir um padrão de urgência coincidente com os últimos meses do exausto governo PS, conseguindo rapidamente o máximo de aquisições e contratos neste período final. Nesse sentido, por exemplo, está a alargar a sua actividade a Viseu.


Actualização: este post foi actualizado às 17:49 de 27-6-2008 e 14:35 de 28-6-2008 e 22:33 de 30-6-2008; e emendado às 23:10 de 30-6-2008.

Limitação de responsabilidade (disclaimer): Nenhuma das entidades ou personalidades mencionadas neste post é, que eu saiba, suspeita ou arguida do cometimento de qualquer ilegalidade ou irregularidade relativa às actividades referidas. A imagem que ilustra este post não é o símbolo do grupo ou das empresas em que participa.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

O sorteio sistemático do computador

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Actualização da lista dos arguidos da operação "Apito Dourado":

Valentim Loureiro - Presidente da Liga de Clube e da câmara municipal de Gondomar
José Luís Oliveira - Vereador na Câmara de Gondomar e presidente do Gondomar FC
José Castro Neves - vereador na câmara de Gondomar e director do Gondomar FC
Pinto de Sousa - Presidente do Conselho de Arbitragem (CA) da Federação Portuguesa de Futebol (FPF)
Francisco Costa - Membro do CA da FPF
Luís Nunes Silva - Membro do CA da FPF
Carlos Manuel da Silva - Membro do CA da FPF
Carlos Carvalho - Associação de Futebol do Porto
Paulo Torrão - Departamento de informática da FPF
Nuno Borba - Árbitro de Setúbal
Pedro Sanhudo - Árbitro do Porto
José Rodrigues - Árbitro de Braga
Fernando Valente - Árbitro de Viana do Castelo
António Eustáquio - Árbitro de Leiria
Licínio Santos - Árbitro de Leiria
Jorge Saramago - Árbitro de Aveiro
Manuel Mendes - Árbitro de Lisboa
Rui Rodrigues da Silva - Árbitro de Vila Real
António Fernando Ribeiro
Mário Augusto Sousa Ribeiro

Diz ainda o Portugal Diário que "Carlos Manuel Carvalho da Associação de Futebol do Porto, Paulo Torrão, do departamento de informática da Federação Portuguesa de Futebol (FPF), Rui Silva, árbitro da Associação de Futebol de Vila Real, António Neves Ribeiro e Mário Sousa Ribeiro foram também constituídos arguidos no processo, embora não tenham sido detidos".

O que não é surpresa é a constituição como arguido de Paulo Torrão do departamento de Informática da FPF. Quem é que acreditava na honestidade do sorteio por computador?... O computador e operador são mais fáceis de administrar do que as bolas e o frigorífico...

Então e a investigação do sorteio sistemático computorizado na Liga de Clubes?... Ou será que alguém acredita no actual processo de designação dos árbitros na Liga?... Ou a designação dos delegados que avaliam os árbitros?... Ou no tratamento dos relatórios dos delegados aos jogos que determinam as classificações?...

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

A recuperação política da cabala

O dr. António Marinho e Pinto, bastonário da Ordem dos Advogados, terá dito, segundo o PortugalDiário, hoje à noite, 31-1-2008, em entrevista a Judite de Sousa na RTP-1, a propósito do processo Casa Pia o seguinte:


O processo Casa Pia ainda está em julgamento: nesta altura, portanto, não há culpados. Nem inocentes: a presunção de inocência não é inocência declarada. Todos os que estão a ser julgados continuam a beneficiar dessa presunção jurídica e mesmo quem, além dos actuais réus, esteve preso, como o dr. Paulo Pedroso (ver abaixo), no âmbito desse processo, não foi declarado inocente pela juíza de instrução dra. Ana de Barros Queiroz Teixeira e Silva ou pela Relação de Lisboa: acusado pelo Ministério Público de 23 crimes de abuso sexual sobre 4 menores, não foi pronunciado. Já o dr. Ferro Rodrigues, mencionado na imprensa (ver abaixo) na imprensa como tendo sido referido no processo, nem sequer chegou a ser arguido.

Por isso, deixo algumas questões:
  • O que sabe o dr. Marinho e Pinto que no processo não souberam?
  • O que sabe o dr. Marinho e Pinto de um processo em que não é parte nem intervém?
  • Merecerão os procuradores e a própria Polícia Judiciária a acusação de perseguição e prisão de inocentes que o bastonário lança sobre eles?
  • E poder-se-á admitir, numa pessoa com a experiência e o estatuto forense que tem, um juízo tão ligeiro da informação concreta publicada?
  • Embora não seja jurista, atrevo-me ainda a perguntar se é legítimo que o bastonário da Ordem dos Advogados se pronuncie sobre um processo que está a decorrer e onde participam outros colegas seus?
  • Não seria de esperar do máximo dirigente dos advogados portugueses a reserva de não atirar pedras sobre um julgamento em conclusão?

Meu caro amigo José: eu acho que, sobre este processo, o dr. Marinho e Pinto não sabe o que diz, mas sabe por que o diz...

A verdade é que a a anunciada recessão da economia norte-americana (descida na taxa de crescimento do Produto Interno Bruto dos EUA de 4,9% para 0,6% do terceiro para o quatro trimestre de 2007, o que sugere a entrada em terreno negativo!...) e os seus inevitáveis efeitos na Ásia e na Europa, têm criado o contexto de que é possível outra vez (como se Ferro alguma vez o tivesse realmente querido ou Sampaio consentido...), sob a égide do Partido Socialista minoritário, organizar o grande rassemblement da esquerda portuguesa - ou, pelo menos, da mais fina, o Bloco - na esperança de um governo de coligação, chefiado pelo cabalístico dr. António Costa, numas contas em que Sócrates já não é parcela. Foi esse o ambiente da teoria da cabala e percebe-se que é esse ambiente frentista que sonham cantar amanhã os nostálgicos-utópicos-ex-PC-tendência-Bloco.

Culpada, mesmo, parece só ser a dra. Catalina Pestana, condenada ao calvário de 23 processos (entre arguida, assistente e testemunha) por causa do seu papel de denunciadora dos abusos sexuais de crianças na Casa Pia...


Limitação de responsabilidade (disclaimer): Paulo José Fernandes Pedroso não foi pronunciado pela juíza de instrução Ana de Barros Queiroz Teixeira e Silva pelos 23 crimes de abuso sexual de menores sobre quatro crianças de que fora acusado pelo Ministério Público no âmbito do processo de abuso sexual de crianças da Casa Pia. Em 9-10-2005, o Tribunal da Relação de Lisboa confirmou a sua não pronúncia. Eduardo Luís Barreto Ferro Rodrigues foi referido no processo de pedofilia da Casa Pia por "3 jovens" vítimas (CM de 10-11-2003) - a Lusa de 20-12-2007 fala em "duas" vítimas que o referiram "como estando envolvido em abusos sexuais ou presente em casas onde estes aconteceram" -, mas negou esses abusos sexuais sobre crianças, não tendo sido acusado pelo Ministério Público, nem sequer sido constituído arguido, nesse caso.


Actualização: este post foi emendado às 1:21 de 1-2-2008.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Os grandes, os pequenos e o Estado

As explicações de anteontem, 19-1-2008, do Governador do Banco de Portugal, na Assembleia da República, sobre a negligência na supervisão bancária e a intervenção directa no favorecimento da tomada de poder da clique socratina de Santos Ferreira e Vara na nova Emaudio no BCP, nem merecem a extensão de um comentário detalhado de tão patéticas que foram. Constâncio já era. Pode durar no cargo principesco - que até se chama "Governador" como se de vice-rei de uma colónia se tratasse... -, mas a partir de agora é um fantasma sem poder, nem qualquer consequência, um refém afectado pelo síndroma de Estocolmo, submisso ao colérico primeiro-ministro.

Está, portanto, enterrado esse caso e coitados dos pequenos accionistas e clientes da nova Emaudio do BCP: os grandes cobrarão ao assobiado José Sócrates a estratégia de saída - deles e dele.

O negócio bancário é um negócio de confiança. Sem confiança, não há investimento, nem depósito, nem entrega de garantias para empréstimos. Ora, a tomada de poder da clique socratina implicou a denúncia dos podres do BCP, necessária para destronar a anterior direcção, abalando o seu prestígio. Portanto, não adianta à administração comunicar resultados positivos, nem ratios sólidos, nem sequer a promessa de alienações (que, agora, depois de terem sido oficialmente desmentidas, temos a certeza de virem a ser realizadas...) de participações do BCP noutras instituições pelo novo "responsável pelo pelouro do desinvestimento de activos", "rede corporate e empresas", o bancário/banqueiro dr. Armando Vara, porque a confiança não será rapidamente estabelecida. Uma eventual manipulação das cotações através da compra agressiva de acções, mesmo se contar com a mesma vista grossa do Banco de Portugal (BdeP) e da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) que aconteceu anteriormente, não será suficiente para os grandes accionistas venderem com ganhos as suas participações qualificadas porque quem lhes pode comprar os grandes lotes, os grandes fundos de investimento e grandes investidores, não se deixam iludir por essas manobras. Além disso, depois da crise do sector do sub-prime (crédito hipotecário de alto risco), a situação internacional está terrível para o negócio bancário e os value investors só entram abaixo do limiar da pechincha.

Se tiver que haver nacionalização, como se prevê em Inglaterra com o banco Northern Rock - se bem que Gordon Brown compense com um gigantesco acordo comercial com a China -, ela será justificada pela exigência prudencial da estabilidade do sistema financeiro... Mas o povo conhece já a verdade. Não chega a suspensão de juros, e a não exigência de garantias adicionais, nos empréstimos concedidos pela clique socratina na Caixa Geral de Depósitos (CGD) que agora tomou conta do BCP com os votos conseguidos com o dinheiro desses créditos. Afastada que está, por enquanto, a fusão com o BPI, por degradação das cotações do BCP e pela independência do banco nortenho face ao Governo de Sócrates, outra possibilidade será a intervenção da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e EDP na Emaudio no BCP, comprando as participações dos accionistas entalados que apoiaram a tomada de poder pelo clique socratina, com mais-valia - em vez do prejuízo que agora sofrem -, depois de um movimento artificial de subida das cotações...

Já o presidente da República tem assistido calado e esquivo a estes desmandos, aparentemente conformado com o saldo da nomeação de Fernando Faria de Oliveira para presidente da CGD, numa partilha do poder do Estado que repugna ao povo.


Limitação de responsabilidade (disclaimer): Do Portugal Profundo, não tenho qualquer interesse particular no Millennium BCP ou empresas concorrentes.

sábado, 5 de janeiro de 2008

Toma lá, dá cá!...

A notícia do Público de hoje, 4-1-2008 sobre o caso BCP é bombástica: "(E)ntre Janeiro e Junho de 2007, o banco do Estado [CGD] financiou em mais de 500 milhões de euros a compra de acções do BCP" por accionistas do BCP ( "22 accionistas", entre os quais, Joe Berardo, Moniz da Maia, Goes Ferreira e Teixeira Duarte) que apoiam a lista socratina de Santos Ferreira e Armando Vara candidata ao banco privado. Uma candidatura de clique socratina que o (in)suspeito Ricardo Eu-Sou-Controlado Costa descreve como um resultado do "acordo tácito com o Ministério das Finanças e o gabinete do primeiro-ministro"...

Num País com um governo descomprometido desencadear-se-ia a imediata suspensão dos envolvidos no empréstimo na sua candidatura à gestão do banco cuja compra de parte significativa do capital eles próprios financiaram, enquanto membros do Conselho Alargado de Crédito da Caixa (juntamente com os socialistas Maldonado Gonelha e Francisco Bandeira e ainda Celeste Cardona do PP), contra a garantia... "feita em primeira linha pelos títulos adquiridos" - as próprias acções do BCP, entretanto desvalorizadas (e com essa garantia "nalguns casos, reforçada com outros activos de menor volatilidade", que o Público não especifica). E seria iniciado imediatamente o respectivo inquérito judicial para apurar os factos gravosos deste caso. Se bem que os investidores, nomeadamente os internacionais, irão achar esta promiscuidade intolerável, prejudicando também a própria imagem da CGD, do Governo que tutela a Caixa e do próprio Estado.

O desmentido-que-não-desmente o essencial, mais um neste caso vergonhoso, hoje propalado pela Caixa Geral de Depósitos (CGD), nesta notícia da Agência Financeira, deixa perceber que os ditos candidatos socratinos - Santos Ferreira e Armando Vara - pertencem ao órgão que autorizou os créditos para financiar a conquista do poder que se candidatam depois a representar.

Louvor ao Público que consegue um furo terrível sobre o rigor e prudência de actuação dos referidos candidatos ao BCP, bem como sobre a mistura de interesses entre quem concede o crédito público, quem escolhe a nova direcção do banco com o capital adquirido por esse financiamento e quem, depois, se candidata a representar o próprio poder cuja conquista financiou.

O furo do Público só não é claro quando afirma, sem conhecimento da informação que nesse primeiro semestre de 2007 os protagonistas possuíam, que "quando o grupo estatal emprestou o dinheiro a Berardo, a Moniz da Maia, a Goes Ferreira e à Teixeira Duarte, não se previa ainda os acontecimentos mais recentes", uma presunção que o próprio comunicado da CGD aproveita - "nada fazia prever..." Nada fazia prever os desentendimentos internos do BCP entre as facções de Jardim Gonçalves e Paulo Teixeira Pinto que vieram a redundar no lançamento de uma terceira via entre os dois grupos?!...

O que o povo queria que o seu banco, pois a Caixa Geral de Depósitos é um banco de capitais exclusivamente públicos, com um passado de prudência financeira e conservadorismo de operações, não se envolvesse no empréstimo de centenas de milhões de euros para operações especulativas em vez de aplicados no desenolvimento deste País, onde os bancos, a começar pelos públicos, muito pouco financiam a pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, produtos e negócios.

O povo queria que o Governador do Banco de Portugal admitisse a sua responsabilidade nos factos que o Diário Económico hoje, 4-1-2007 denuncia e se demitisse por incapacidade de resolver um caso que, segundo o jornal, conhecia desde 2001!...

O povo quer responsabilidade, rigor e isenção das instituições públicas - Governo, procuradoria-geral da República, Caixa Geral de Depósitos, Banco de Portugal e Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) - em vez deste pântano fétido. O povo quer, mas não tem senão vergonha.


Pós-Texto (18:02 de 5-1-2008): O post "Para que serve um Presidente da República em Portugal?" de José Maria Martins reflecte a necessidade de intertvenção do Presidente da República neste assunto porque a situação é demasiado grave para a abstenção ou procedimentos discretos.

Actualizações: Este post foi actualizado às 18:02 de 5-1-2008.

Limitação de responsabilidade (disclaimer): Não tenho qualquer interesse particular no Millennium BCP ou em empresas concorrentes. Exclusivamente pela convicção do interesse nacional e da liberdade económica, apoio a candidatura à administração do BCP da lista encabeçada pelo dr. Miguel Cadilhe.

terça-feira, 13 de novembro de 2007

"Democracia Directa e Dignidade Humana"

A pedido dos leitores, publico o texto da conferência "Democracia Directa e Dignidade Humana" que proferi ontem, 12-11-2007, no Centro Académico Vimaranense.



"Democracia directa e dignidade humana"António Balbino Caldeira
Conferência no Centro Académico Vimaranense (CAVIM)
Guimarães, 12-11-2007

........."Em Cristo, não há judeu nem grego, nem escravo nem homem livre"

.................................................Carta de São Paulo aos Gálatas 3, 28


Sumário
A democracia directa é a nova exigência da dignidade humana. Para corrigir os abusos dos eleitos no quadro obsoleto da democracia representativa, os cidadãos têm de recuperar o poder de sufrágio real e a soberania política, usurpada pelos directórios partidários nacionais e locais e sujeita a fidelidades secretas. A dignidade humana exige a intervenção dos cidadãos na escolha livre dos eleitos, a sua consulta nas grandes decisões do Estado, a transparência e a prestação de contas pelos dirigentes e regras efectivas de controlo dos mandatos. A dignidade humana reclama a maioridade dos cidadãos permitida pela democracia directa, a qual, por sua vez, é favorecida pelo progresso tecnológico actual. Sem essa reforma política, não é possível o desenvolvimento integral da comunidade.


1. IntroduçãoO propósito desta minha conferência[1] é relacionar a dignidade humana e a democracia directa, explicando depois o conceito e conteúdo desta nova forma de governo.


2. DignidadeEm minha opinião, a democracia directa é o novo nome da dignidade da cidadania – parafraseando a célebre bênção do Papa Paulo VI na convocação do mundo para o desenvolvimento dos povos de que “se o desenvolvimento é o novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças?”[2].

Dignidade é uma palavra que deriva[3] do latim “dignitas” com o sentido português de "valia", "mérito". Significa o valor da pessoa porque toda a pessoa tem valor, tem dignidade. Ora, essa expressão de consideração pessoal, que integra o conceito de dignidade, é atribuída, por natureza e direito divino, a qualquer elemento do género humano e é condição de existência e de respeito moral. A dignidade é uma condição pessoal. Sem dignidade, o homem não é.

A dignidade é uma condição pessoal, do indivíduo, mas também uma condição social. Isto é, a dignidade impõe a assunção moral do indivíduo, como o respeito social. Todo o homem tem uma condição intrínseca de dignidade que o faz merecer o respeito dos outros. Esse respeito dos outros atribui ao indivíduo direitos e obrigações comunitárias.

A evolução social da humanidade subiu a soberania do povo, a democracia – palavra[4] que tem origem no grego “demokratia”, de “demos“ (pessoas simples) + “kratos“ (governo, força) - , à melhor forma de governo. Mas a versão de democracia em vigor é a democracia representativa.

A sociedade, nos órgãos políticos que ergue com o acordo dos cidadãos, consente na representação através de eleitos, representantes da sua vontade. A liberdade forma essa eleição e a chefia faz-se na base do consentimento.

Portanto, a dignidade humana exige a possibilidade do sufrágio livre e o cumprimento pelos seus representantes do acordo que suportou a sua eleição.

A dignidade humana exige o sufrágio livre, pois reclama a devolução pelos escalões intermédios e de direcção dos partidos do poder de candidatura livre aos órgãos partidários e do Estado em vez da nomeação, ou eleição limitada a uma lista única ou curta dos candidatos por estruturas de direcção locais, regionais e nacionais.

A dignidade humana exige o cumprimento do acordo entre eleitos e eleitores que esteve na origem da eleição. A eleição dos representantes é feita no compromisso, solene através do sufrágio, de realização das promessas que levaram ao voto dos eleitores. O povo vota para a realização desta e daquela decisão, e não doutra ou daqueloutra. A violação do compromisso eleitoral de realização de decisões, não pode ser resolvida na próxima eleição, pois concerne ao mandato anterior. É tarde.

Mas não é só conteúdo do contrato de eleição que importa respeitar, mas também a forma de exercício do cargo que tem de se conformar com as regras que a sociedade institui nas constituições políticas e nas leis. Já recomendava o Papa Leão XIII: “Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições”[5]. A corrupção, não só da vontade dos eleitores desrespeitada após a eleição, com a comum desculpa da alteração das circunstâncias ou desconhecimento da situação real do poder, mas também do exercício do poder com o abuso do cargo para obtenção de vantagens particulares, constitui uma usurpação dos mandatos e deve ser resolvida de modo eficaz. Não tem sido.

A dignidade humana requer uma forma de democracia que resolva os problemas da democracia representativa: a democracia directa.


3. Democracia Directa
A necessidade da democracia directa resulta da obsolescência da democracia representativa.


3.1. A obsolescência da democracia representativa
A democracia representativa é um sistema de soberania do povo através de representantes eleitos pelos cidadãos. A democracia representativa quis-se, além disso, pluralista, por permitir a participação das diversas ideias e grupos da sociedade.

A democracia representativa é apenas uma das formas possíveis de democracia. Se recuarmos a Atenas e a Roma, encontramos formas de democracia mais directa, ainda que restrita a sectores limitados da sociedade.

A representação tem sido usada como uma saída viável para a utopia democrática, um sistema político onde o poder político reside em cada cidadão. A eleição de cidadãos encarregados, pela maioria, para representar a vontade dos demais, constituíu-se com uma solução possível para a questão democrática: todos participariam do poder, através da eleição periódica por votação em partidos organizados para representar as ideias e vontades dos vários grupos sociais.

Para equilibrar e garantir o cumprimento dessa representação, tem de funcionar a divisão dos poderes, traçada desde Platão[6], Aristóteles[7], Políbio[8] e Cícero[9] aos modernos James Harrington[10], John Locke[11], Montesquieu[12] e James Madison[13] – poder legislativo, poder executivo e poder judicial - cada um assumindo funções próprias, limitando e fiscalizando os outros. Todavia, essa separação formal é prejudicada pela prática consolidada de controlo do poder legislativo pelo poder executivo, através da maioria formada que lhe dá origem, seja por um só partido, seja por uma aliança de vários partidos, e pela prática contemporânea de controlo do poder judicial pelo mesmo poder executivo. Isto é, os mecanismos formais da democracia representativa, os tais “balances and checks”[14], a separação de poderes de Montesquieu[15], não funcionam.

A intermediação dos partidos e dos seus dirigentes teria de ser instrumental, isto é, concorrer para a representação popular e não para a seriação dos candidatos e exercício do poder do Estado em função dos interesses dos dirigentes. Aqui reside o nó górdio da degradação da democracia representativa.

O imbróglio contemporâneo da democracia representativa está na eleição e na representação.

Está, em primeiro lugar, na eleição porque os partidos monopolizam a escolha dos candidatos às eleições, tornando muito difícil, pela determinação absurda do número de eleitores necessários e procedimentos, a apresentação ao sufrágio por independentes, e porque a escolha intra-partidária dos candidatos é realizada pelos directórios locais, regionais (distritais) e nacionais. A escolha dos candidatos não cabe aos militantes mas aos dirigentes que estes elegem. A escolha dos dirigentes, já eleitos por sindicatos de votos familiares e de interesses, é realizada autonomamente por estes, com raras consultas prévias aos militantes, na base da troca de favores e de cargos futuros. Na prática, portanto, o eleitor não escolhe o candidato que deseja, mas o candidato que o directório partidário respectivo lhe impõe.

Está, em segundo lugar, na representação porque os eleitos têm o privilégio de exercer os cargos autonomamente da vontade de quem o elegeu e sem controlo efectivo do seu exercício, pela subordinação do poder judicial ao poder político. A autonomia do candidato da sua base eleitoral é favorecida pelo sistema proporcional de eleição para o parlamento (em vez do sistema eleitoral misto, com circunscrições que elegem cada uma um só deputado e uma circunscrição nacional que garanta a representação das forças políticas mais pequenas) que torna os eleitos dependentes do partido. As desculpas do desconhecimento da situação da instituição ou da alteração das circunstâncias são usadas para justificar decisões exactamente opostas às promessas realizadas antes da eleição e não existe nenhum mecanismo eficaz de cassar juridicamente o mandato. O garantismo que funciona a favor do acusado, e não do povo, e a demora do sistema judicial tornam quase impossível a perda de mandatos decidida pelos tribunais, mesmo quando há iniciativa política. Por outro lado, não há qualquer processo de cassação eleitoral do mandato (recall election) que permita o lançamento de uma iniciativa, assinada por um número de eleitores necessário, que leve ao voto popular de remoção de um político do seu cargo.

A democracia representativa tornou-se obsoleta pela corrupção que a manieta, pela evolução tecnológica e pela ânsia popular de democraticidade.

Comecemos com o que temos de acabar: a corrupção.

A vontade do povo não conta. As eleições deixaram de ser a selecção dos melhores para se tornarem a escolha dos menos maus, uma ordenação de medíocres na degradante escala da corrupção moral. Há políticos íntegros, mas são afastados dos postos de decisão e, na sua maioria, parecem, forçados pela conveniência, a conviverem com o crime.
O medo dos dirigentes do incêndio nos seus rabos de palha é a garantia da cumplicidade. Em Portugal, a democracia continua a ser pisada por uma classe de dirigentes, dominante no Estado, autora e parceira do Mal, impune à justiça e imune à lei. O primado do Direito é substituído pelo primado do poder.

A direcção do Estado - entendido na sua forma ampla, incluindo políticos, partidos, dirigentes da administração pública, órgãos autárquicos, media, alta finança, etc. - vive dentro de muralhas impenetráveis, num castelo fechado à sociedade civil, um reduto em que a corrupção é aceite como facto banal, erigida a regra consuetudinária, questão sem relevo face à impunidade de crimes maiores. Políticos acusados de corrupção material e sob suspeita voltam aos lugares cimeiros. A política transformou-se numa actividade com uma amoralidade própria, sem respeito da moral em vigor na sociedade civil. À semelhança do Doppio Stato italiano, Portugal é agora um país duplo: poder sem vergonha e povo envergonhado.

A corrupção, a imunidade e impunidade dos políticos resultam do seu domínio das estruturas partidárias locais e nacionais e controlo dos media tradicionais (TVs, rádios e jornais nacionais e locais) mediante capatazes e negócios, e do controlo sobre o sistema judicial, inclusivé sobre sectores independentes das magistraturas.

A liberdade de informação nos media tradicionais é limitada pelos editores de confiança. A liberdade de expressão é coarctada pelo poder legislativo. Os delitos de opinião são perseguidos pelo poder judicial, sob a pressão do poder político para que sejam investigados de modo prioritário. Os próprios media tradicionais, com raras excepções, servem os ataques dos aflitos contra presumidos delitos de opinião. A blogosfera, com a vantagem de estar territorialmente localizada no estrangeiro, é objecto de ataque judicial e dos media antigos por causa da liberdade de que ainda vai usufruindo.

A comédia trágica das decisões dos dirigentes políticos já deixou de provocar o riso do povo para só lhe causar desdém e repulsa. Os pactos de regime são percebidos pelo público como a essência da conservação da ruína do sistema. O Estado deixou de ser uma pessoa de bem.

A acusação chocha de justicialismo, que por vezes se atira contra esta reacção legítima aos abusos, cheira ao mofo podre dos salões sujos, dos gabinetes pestilentos e das antecâmaras fétidas, onde pataca-a-mim-pataca-a-ti se repartem orçamentos, discutem comissões, atribuem tachos, combinam abusos, comercializam favores, decidem manchetes, orquestram campanhas, arquivam processos, perseguem cidadãos. A corrupção.

Porque o único processo de mudar o sistema é expor a corrupção. As práticas corruptas, já consuetudinárias, no Estado português só se mudam com a exposição do Mal. Como a corrupção domina os aparelhos partidários, instâncias de poder do Estado e grupos de pressão, e o sistema mediático tradicional está quase todo controlado, de forma directa e indirecta, pelo Governo, só a cassação pública dos corruptos, através da evidência dos seus crimes, pode reformar o sistema. No estertor, o sistema convoca os servos do ex-quarto poder e tenta resistir. A morte está anunciada, mas o sistema é eterno enquanto dura.

O sistema não se está a aguentar com a denúncia dos abusos e, por isso, reage, procurando a punição - pessoal, familiar, profissional, económica, política e judicial - dos cidadãos deste tempo novo. Só a verdade liberta.

Passando agora pela tecnologia, modo e instrumento de evolução da sociedade humana.

A tecnologia acabará por transformar o sistema - e rapidamente se o povo impuser a sua vontade própria à adesão clubística incondicional que agora mantém o limbo e o inferno. A reforma do sistema - e o desenvolvimento! - demorará mais, se o povo não abandonar a resignação a organizações que funcionam de modo anti-democrático e a personagens corruptas. Não obstante, mesmo que essa consciencialização do erro de transpor para a política o fanatismo clubístico e da separação da sociedade em castas - a dos políticos e a do povo - se atrase, a mudança que a tecnologia impõe, é inevitável. O problema é que não podemos esperar que o equipamento tecnológico resolva o que pertence aos homens fazer. Pois, a demissão do dever de mudar provoca um sofrimento e atraso intolerável à sociedade.

E chegando à questão da ânsia popular de democraticidade.

A ânsia popular de democraticidade decorre da lenta emancipação do povo. Há uma consciencialização lenta que demorou e que finalmente se consolida. A emancipação política é um produto das condições de aumento e alargamento da instrução. O povo quer participar da política, nas decisões e no exercício político. Entende que a política é uma actividade demasiado importante para ser deixada apenas aos políticos.

Não é mais possível a manutenção da realpolitik de cariz ditatorial, descontrolada, cínica, alheia à informação e opinião do povo. Não se pode admitir uma farsa de razão de Estado que aliena o povo num delírio perigoso que chega a admitir, à outrance, o juízo desavergonhado de oportunidade judicial sobre factos jurídicos escandalosos!... Como se determinado crime não pudesse ser investigado com a justificação de que não é oportuno…

No entanto, só é possível recuperar a democracia (o poder do povo), usurpada pelos representantes, com a denúncia desses níveis intermédios anti-democráticos que administram o controlo e filtram a informação. Não é possível a mudança de protagonistas neste sistema político blindado. A esmagadora maioria dos homens e mulheres do aparelho, autores, cúmplices e servos da corrupção moral, não aceitam a reforma que os eliminaria do poder. Por isso, precisamos de um novo sistema político. É urgente a reforma do sistema político para a implantação da democracia directa.

Para sair do beco da casta política, em que Portugal vive, temos de reconverter o sistema político, tornando a democracia representativa mais directa. Trata-se de desintermediar a política e assegurar maior democraticidade na eleição. Desintermediar a política dos caciques, dinossauros e jotinhas locais, distritais e nacionais, de bolsos cheios de fichas de militantes familiares (pais, sogros, filhos, avós, tios e primos...), arvorados em grandes eleitores, reis e fazedores de reis, que garantem o poder das estruturas locais e, por aí, controlam as distritais e elegem os presidentes dos partidos, e vice-versa, sem uma escolha efectiva feita pelo povo. E assegurar maior democraticidade na representação com o respeito da vontade popular, o exercício escrupuloso dos cargos e a autonomia do poder judicial.


3.2. A novidade da democracia directaPara resolver a obsolescência da democracia representativa é necessária reformá-la e instituir a democracia directa[16].

A democracia directa que proponho é uma forma de governo na qual a soberania pertence realmente ao povo que elege livremente os seus representantes, delimita o exercício do seu mandato e participa no processo de decisão política. Na sua versão utópica, a democracia directa não teria sequer representantes. Na sua versão exequível, aquela que defendo e de aqui trato - e que alguns chamam, semi-directa -, democracia directa é um sistema de governo que radica no povo o poder de decisão: reduz o arbítrio de decisão dos graus intermédios de poder partidário, alarga a possibilidade de eleição dos representantes e condiciona a acção dos eleitos ao mandato popular. Os EUA e Suíça utilizam modelos mitigados de democracia directa.

Os representantes ficam obrigados ao mandato que lhes foi confiado pelos eleitores, em vez de poderem seguir durante o período do exercício do cargo apenas a sua vontade. O poder é exercido pelo povo através da livre escolha dos representantes, do cumprimento estrito pelos eleitos do mandato popular e da própria intervenção através de referendos e iniciativas legislativas dos cidadãos.

A livre escolha dos representantes verifica-se com a realização de eleições primárias nos partidos para os diversos cargos internos, autárquicos, deputados e presidente da República, às quais podem concorrer militantes apoiados por listas subscritas por um número suficiente de eleitores (mas não o absurdo número de 10% dos militantes!...); e com a facilitação burocrática e no número de eleitores de candidatura de cidadãos independentes.

O cumprimento estrito do mandato popular verifica-se pela criação de um sistema eleitoral maioritário que desloque o candidato da obediência ao directório partidário, definição clara das promessas eleitorais, a publicação do registo de votação e pela possibilidade da cassação do mandato em caso de desrespeito pelo mandato confiado. A desconexão entre o eleito e o eleitor passado o momento do sufrágio, e a sua autonomia para o mandato, é um princípio postulado por Edmund Burke[17] que tem servido para o desprezo dos eleitores, remediado apenas no sufrágio seguinte, quando é possível. O que Burke disse aos eleitores de Bristol após a eleição para o parlamento foi:
“Certamente, Senhores, a felicidade e glória de um representante deveriam ser viver na mais estreita união, na correspondência mais próxima e numa comunicação sem reserva com os seus eleitores. (…) Mas a sua opinião neutral, o seu juízo maduro, a sua consciência iluminada, ele não a deve sacrificar a vós, a qualquer homem ou qualquer conjunto de homens. Isso ele não deriva do vosso prazer – não, nem da lei ou da Constituição. São um depósito da Providência, pelo abuso do qual ele responde. O vosso representante deve-vos, não apenas a sua indústria, mas o seu juízo, e trai-vos, em vez de vos servir, se o sacrifica à vossa opinião. (…)
(M)as instruções impositivas, mandatos emitidos, que o deputado estaria amarrado cegamente e implicitamente a obedecer, votar e argumentar, ainda que contrário à mais clara convicção do seu juízo e consciência – isso são coisa absolutamente desconhecidas das leis desta terra e que resultam de um erro fundamental dos preceitos e métodos da nossa Constituição.
O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diversos e hostis, que cada um deve sustentar, como agente ou advogado, contra outros agentes ou advogados; o Parlamento é uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse – o do conjunto – onde não devem orientar-nos os propósitos e preconceitos locais, mas o bem comum, que resulta da razão geral do todo. Vós, realmente, escolhestes um deputado; mas quando o escolhestes, ele não é o deputado por Bristol, mas membro do Parlamento.”
[18]

Burke, um conservador, excluía qualquer valor acima do serviço da consciência, um “depósito da Providência” divina, e da nação. Todavia, parece mais simples que em vez de contrariar o que presume ser a vontade dos eleitores, o representante se demita para evitar vergar a sua consciência e a sua própria vontade. O mandato foi-lhe delegado – e pertence – ao povo; não lhe foi depositado para fazer o que entende, guiado pela graça da iluminação divina. No plano ideal, compreende-se o postulado de Burke, mas a prática da democracia representativa com o sistema eleitoral proporcional, faz derivar a ordem não do comando da consciência ou do objecto da nação, mas da ordem do partido, muitas vezes sujeito à satisfação de compromissos de financiamento. O postulado de Burke deixou de ser viável para o serviço moral do povo e do Estado.

Os referendos, que também podem ter origem nos próprios eleitores através de petições, e iniciativas legislativas dos cidadãos que o parlamento deve analisar, constituem formas de intervenção legislativa directa dos cidadãos, que devem ser promovidas por contribuírem para a participação popular na política.

Porém, não se confunda a democracia directa com uma democracia participativa indirecta, através de grupos de influência e pressão com maior acesso à informação e aos meios de poder, como a experiência dos orçamentos participativos e instrumentos semelhantes de atribuição de poder a instituições específicas e seleccionadas da sociedade civil. Essa participação na decisão através de grupos influentes, e não directamente dos cidadãos através do seu voto, levaria, apenas, a maior arbítrio, pois não é com o deslocamento do poder dos partidos para organizações sectoriais e programáticas, escalonadas pela sua conformidade politicamente correcta, que se atinge a democracia real. Na prática, essas organizações disputariam o poder e influenciariam as decisões cuja raiz tem de ser efectivamente o cidadão. Essa democracia participativa não se distinguiria do modelo da intervenção dos lóbis de que a sociedade se queixa. E não é com a substituição de uns lóbis por outros, acrescida até da distribuição do poder por esses novos lóbis, que a democracia melhora.

A democracia directa em que acredito, não é apenas uma democracia referendária, mas um sistema político mais abrangente, com regras de maior democraticidade para a eleição e exercício dos cargos. Esta formulação da democracia directa, não elimina a representação política, mas responsabiliza-a, ao mesmo tempo que devolve a escolha efectiva ao povo.

A renovação do sistema político em direcção à democracia directa é delicada, pois o perigo de instrumentalização é forte. Mas a democracia directa não terá menos controlo do exercício dos mandatos do que a democracia representativa. Pelo contrário, exige uma fiscalização mais próxima e frequente do exercício dos cargos, transparência dos actos, sanções automáticas para incumprimento dos mandatos, separação real dos poderes e outras garantias de cuidado e prudência na administração.

O povo quer ter uma participação maior nas decisões do Estado e reclama o respeito da sua vontade, não se conformando com a velha soberania dos mandatos durante o longo prazo da legislatura. Não é já suficiente confiar o Governo a um partido para quatro anos, com liberdade plena para tomar decisões contra a vontade do povo.

A evolução tecnológica já permite, aliás, através da Internet, a consulta dos cidadãos para decisões de relevo – a consulta constante dos cidadãos é utópica. Apesar disso, veja-se o projecto australiano de democracia electrónica do Senator On-Line[19] em que o representante legislativo vota conforme indicação dos seus constituintes.

O costume, que se começa a consolidar, das derrotas das eleições intercalares fazerem cair os governos por causa da convicção de falta de legitimidade, é já um sinal da intervenção popular extra-sufrágio quadrianual, tal como é, ainda mais frequente a consulta sistemática através de sondagens de opinião de amostra única ou de painel que provocam consequências na condução política dos Estados.

Ao contrário do que displicentemente se veicula, não há um afastamento dos cidadãos em relação à política, salvo da política velha e relha, mas um aumento da vontade de participação nas decisões de governo que não é correspondido pela elite política instalada. Em vez de desinteresse dos eleitores, há marginalização do povo.


3.3. Ideias práticas de aplicação da democracia directa
A democracia directa é um sistema e um processo. Algumas sociedades já adoptaram bastantes medidas de democracia directa, outras não lhe dão conteúdo formal e mecanismos de execução, outras até resistem a introduzir mecanismos de maior democraticidade.

Nesta conferência não há espaço para desenvolver em detalhe essas ideias. Mas ficam aqui enunciadas algumas ideias práticas para aplicação da democracia directa:
  • Transparência e escrutínio das decisões dos eleitos, nomeadamente:
    .....Publicação em Diário da República de todos os actos administrativos;
    .....Facilitação de escrutínio pelos cidadãos das decisões, processos e resultados da decisão administrativa;
    .....Obrigação de discussão pública das decisões de maior relevo, nomeadamente daquelas que envolvam investimentos acima de determinado valor;
  • Tornar o processo legislativo, da Assembleia da República e do Governo, mais transparente (conferências de líderes e comissões especializadas) escrutinável e, com possibilidade de intervenção real dos cidadãos e organizações da sociedade civil;
  • Contratação pública mais clara em maior restrição da excepção de negociação particular de contratos com a administração pública acima de determinado valor;
  • Responsabilização pessoal dos eleitos pelo desempenho do cargo e desrespeito dos mandatos, nomeadamente despesas e contratação, com perda automática de mandato após apuramento da ilegalidade ou irregularidade;
  • Adopção do sistema eleitoral misto nas eleições para o parlamento, com circunscrições de eleição unipessoal e uma circunscrição nacional que garanta a eleição de representantes dos partidos mais pequenos;
  • Prestação de contas (accountability) pelos eleitos;
  • Certificação de contas e estatística por entidades independentes e da União Europeia;
    Registo de interesses dos eleitores e candidatos e de declarações de rendimentos com perda automática de mandato para incumprimento ou falsas declarações;
  • Representação dos eleitos em vez da co-optação de políticas palacianas;
  • Separação real dos poderes: legislativo, executivo e judicial;
  • Independência verdadeira e consequente do poder judicial e maior autonomia com imposição de sanções pelo Tribunal de Contas;
  • Aprofundamento das garantias constitucionais sobre o exercício do poder;
  • Cassação de mandatos por incumprimento, mediante votação no caso de incumprimento eleitoral e automática no caso de infracção grave;
  • Eleições primárias nos partidos para todos os cargos electivos internos, do Estado e autarquias;
  • Audição pública dos candidatos a nomeações políticas;
  • Facilidade de apresentação de candidaturas independentes e desburocratização do respectivo processo;
  • Direito de iniciativa popular de propostas de lei, com a apresentação ao Parlamento e a referendo obrigatório de petições assinadas por um certo número de cidadãos, e aproveitamento de eleições para cargos (Parlamento, presidenciais, autarquias e Parlamento Europeu), para consultas populares;
  • Clareza de financiamento e controlo das contas das organizações políticas pelo Tribunal de Contas, com sanções de perda de mandato e penais para os casos de incumprimento;
  • Supressão da imunidade política para qualquer facto exterior ao mandato político;
  • Liberdade efectiva de informação e de opinião dos cidadãos.

A democraticidade interna dos partidos merece uma consideração especial, pois é aí que está um dos problemas maiores do regime. Deve haver uma reforma da lei dos partidos políticos e da sua aplicação que passe a garantir:
  • regras para tornar mais fácil o acesso aos partidos;
  • possibilidade de recurso da adesão de militante através da estrutura central dos partidos;
    escolha dos candidatos a presidentes de junta, de câmara, deputados e presidente, através de eleição directa pelos militantes;
  • transparência e escrutínio do registo e manutenção dos militantes nos órgãos nacionais;
    regras estritas de financiamento partidário com penalização pessoal dos dirigentes em caso de incumprimento de legislação;
  • regras rigorosas de eleição interna e de candidatos: marcação, publicitação e escolha;
  • facilitação da apresentação de candidaturas aos órgãos internos e a candidaturas autárquicas e nacionais, na burocracia e no número de militantes necessários.

Contudo, como sabemos, não basta edificar de forma determinada uma legislação: é preciso executá-la. Isto é, tem de existir regulamentação eficaz, com direitos, obrigações e sanções, para a pôr me prática e definir órgãos que a fiscalizem.


3.4. A questão dos meios
A questão dos meios é decisiva para a avaliação e criação de condições objectivas de mudança. Neste ponto, entra a tecnologia como aliada desta transformação política, com especial relevo para a Internet, mesmo nos regimes políticos mais ditatoriais e fechados. A rede (net) permite a exuberância técnica e moral da cidadania.

Acabou o paradigma salazarista de informação. Já não se consegue governar segundo a velha máxima salazarista de que "politicamente, só existe o que o povo sabe que existe". O paradigma clássico de comunicação política estava realmente obsoleto e foi destruído pela avalanche da procura (o cidadão-repórter). O cidadão-(e)leitor (e e-leitor) ganhou uma costela de repórter. Hoje, o povo pode livremente procurar, editar, publicar, comentar, difundir e amplificar informação para milhares de leitores, gratuitamente, em torrente contínua, rápida, funda e aguda, sem a necessidade de vencer o filtro espesso dos media.

Aquilo a que chamámos Páscoa da Cidadania de 2007 - difusão do Dossier Sócrates (percurso académico e utilização do título de engenheiro por José Sócrates) - representou a viragem, a primeira ocasião em que a obsolescência desse modelo se tornou evidente e se manifestaram os efeitos poderosos da revolução tecnológica da informação e comunicação sobre o sistema político e social português. Do blogue Do Portugal Profundo, passou aos outro blogues, depois os fóruns de opinião e temáticos, daí para os mails, a rua – e, in extremis, os reboques dos jornais, das rádios e TVs, quando se tornou insuportável manterem o silêncio ensurdecedor...

Os cidadãos libertaram-se do jugo da intermediação e assumiram a cidadania, a responsabilidade de intervir na polis, com as suas capacidades disponíveis: a informação e a comunicação. Nesta luta por maior liberdade e democracia a blogosfera tem o papel principal e tornou-se incontornável ao sistema político-mediático português.

Estando os media tradicionais (jornais, rádios e TVs) debaixo do controlo directo e indirecto, através de dependências várias, do Governo – e o Governo Sócrates dispõe de uma força de controlo sobre os media tradicionais como nunca se viu depois do 25 de Abril de 1974 – importa contarmos, para a mudança, com os meios alternativos:
  • Blogues
  • Fóruns
  • E-mail
  • SMS
  • A caixa de ressonância dos media tradicionais

Os regimes que se fecham definham por falta de ar e luz, e tudo o que se oprime acaba por rebentar. Na Páscoa da Cidadania de 2007, o regime sofreu um abanão, mas importa aprender para que se incorra em revoltas semelhantes ao cacelorazo argentino de 2001, o 13 de Março de 2004 em Espanha, as émeutes francesas do Outono de 2005 e os protestos húngaros do final de 2006.

Ora, a resposta que o sistema político deve dar não é o endurecimento da sua política de controlo dos media tradicionais, das agências de regulação, das polícias e das magistraturas pelo poder executivo, mas a humildade da adaptação à vontade popular nesta nova realidade tecnológica informativa e comunicacional. É essa mudança da política, em todos os partidos, que o povo reclama agora. Essa vontade popular de mais democracia - democracia directa - não pode ser negada.


4. ConclusãoCreio que ficou provado o propósito da minha comunicação: a relação entre dignidade humana e democracia directa e explicado o conceito e aplicação prática da democracia directa como nova forma de governo.

O caminho da valorização da dignidade humana, condição pessoal e social do indivíduo, conduz à democracia directa, convocada pela evolução tecnológica e pela vontade popular de democracia real. Não é uma tarefa para um partido, mas para um movimento alargado da sociedade civil que promova a reforma do sistema político e crie um meta-paradigma de mudança no qual se reconcilie o povo com o Estado e se renove a esperança.


Notas de fim de texto:[1] Este texto usa excertos de posts do meu blogue Do Portugal Profundo sobre a democracia directa.[2] Papa Paulo VI, Carta Encíclica “Populorum Progressio” sobre o Desenvolvimento dos Povos, 3-3-1967, § 87, http://www.vatican.net/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum_po.html.[3] Cf. Online Etimology Dictionary, http://www.etymonline.com/index.php?search=dignity&searchmode=none, 8-11-2007.[4] Online Etimology Dictionary, http://www.etymonline.com/index.php?search=democracy&searchmode=none, 8-11-2007[5] Papa Leão XIII, Carta Encícilica “Rerum Novarum” sobre a Condição dos Operários, 15-5-1891, § 35 (http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html).[6] PLATÃO (c. 428-347 a.C.), Leis (http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0166, edição em inglês)[7] ARISTÓTELES (c. 384-322 a.C), Política (http://classics.mit.edu/Aristotle/politics.html, edição em inglês).[8] POLÍBIO (c. 203-120 a.C.), Histórias ou Ascensão do Império Romano (http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?lookup=Plb.+toc, edição em inglês ou grego).[9] CÍCERO, Marcus Tullius, De Re Publica, c. 54-51 a.C. (http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php&title=545, edição em inglês)[10] HARRINGTON, James, The Commonwealth of Oceana, 1656 (http://www.gutenberg.org/etext/2801)[11] LOCKE, John, A Essay Concerning the True Original, Extent and End of Civil Government, 1689 (http://jim.com/2ndtreat.htm)[12] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, De l´Esprit des Lois, 1748 (http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/de_esprit_des_lois_tdm.html) [13] MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John, Federalist Papers, 1787-1788 (http://www.gutenberg.org/etext/18).[14] MADISON, James, Federalist Paper no. 9 em MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John, Federalist Papers, 1787-1788 (http://www.gutenberg.org/etext/18).[15] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, De l´Esprit des Lois, 1748 (http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/de_esprit_des_lois_tdm.html)

[16] Sobre a democracia directa veja-se:
  • ACE Project – Focus on Direct Democracy (
http://aceproject.org/ace-en/focus/direct-democracy

)

  • C2D – Research and Documentation Centre on Direct Democracy (http://www.c2d.ch/
  • )
  • Citizen Power Magazine – Direct Democracy for the 21st Century http://www.citizenpowermagazine.net/)
  • Initiative and Referendum Institute – University of Southern California (http://www.iandrinstitute.org/)
  • International Institute for Democracy and Electoral Assistance (http://www.idea.int/elections/dd)
  • KAUFMANN, Bruno e WATERS, M. Dane (eds.), Direct Democracy in Europe: A Comprehensive reference guide to the initiative and referendum process in Europe, Initiative & Referendum Institute Europe (IRI – Europe), Carolina Academic Press, Durham, 2004 (http://www.iri-europe.org/documents/almanac_content.pdf)
  • Lista Partecipada (http://www.listapartecipata.it/
  • )
  • SOL - Senator On Line (http://www.senatoronline.org.au/)
  • Wikipedia – Direct Democracy (http://en.wikipedia.org/wiki/Direct_democracy)

  • [17] BURKE, Edmund, Speech To The Electors Of Bristol At The Conclusion Of The Poll, 3-11-1774 (http://www.ourcivilisation.com/smartboard/shop/burkee/extracts/chap4.htm)[18] BURKE, Edmund, Speech To The Electors Of Bristol At The Conclusion Of The Poll, 3-11-1774 (http://www.ourcivilisation.com/smartboard/shop/burkee/extracts/chap4.htm, tradução minha)
    [19] Senator On-Line (http://senatoronline.com.au/)