terça-feira, 13 de novembro de 2007

"Democracia Directa e Dignidade Humana"

A pedido dos leitores, publico o texto da conferência "Democracia Directa e Dignidade Humana" que proferi ontem, 12-11-2007, no Centro Académico Vimaranense.



"Democracia directa e dignidade humana"António Balbino Caldeira
Conferência no Centro Académico Vimaranense (CAVIM)
Guimarães, 12-11-2007

........."Em Cristo, não há judeu nem grego, nem escravo nem homem livre"

.................................................Carta de São Paulo aos Gálatas 3, 28


Sumário
A democracia directa é a nova exigência da dignidade humana. Para corrigir os abusos dos eleitos no quadro obsoleto da democracia representativa, os cidadãos têm de recuperar o poder de sufrágio real e a soberania política, usurpada pelos directórios partidários nacionais e locais e sujeita a fidelidades secretas. A dignidade humana exige a intervenção dos cidadãos na escolha livre dos eleitos, a sua consulta nas grandes decisões do Estado, a transparência e a prestação de contas pelos dirigentes e regras efectivas de controlo dos mandatos. A dignidade humana reclama a maioridade dos cidadãos permitida pela democracia directa, a qual, por sua vez, é favorecida pelo progresso tecnológico actual. Sem essa reforma política, não é possível o desenvolvimento integral da comunidade.


1. IntroduçãoO propósito desta minha conferência[1] é relacionar a dignidade humana e a democracia directa, explicando depois o conceito e conteúdo desta nova forma de governo.


2. DignidadeEm minha opinião, a democracia directa é o novo nome da dignidade da cidadania – parafraseando a célebre bênção do Papa Paulo VI na convocação do mundo para o desenvolvimento dos povos de que “se o desenvolvimento é o novo nome da paz, quem não deseja trabalhar para ele com todas as forças?”[2].

Dignidade é uma palavra que deriva[3] do latim “dignitas” com o sentido português de "valia", "mérito". Significa o valor da pessoa porque toda a pessoa tem valor, tem dignidade. Ora, essa expressão de consideração pessoal, que integra o conceito de dignidade, é atribuída, por natureza e direito divino, a qualquer elemento do género humano e é condição de existência e de respeito moral. A dignidade é uma condição pessoal. Sem dignidade, o homem não é.

A dignidade é uma condição pessoal, do indivíduo, mas também uma condição social. Isto é, a dignidade impõe a assunção moral do indivíduo, como o respeito social. Todo o homem tem uma condição intrínseca de dignidade que o faz merecer o respeito dos outros. Esse respeito dos outros atribui ao indivíduo direitos e obrigações comunitárias.

A evolução social da humanidade subiu a soberania do povo, a democracia – palavra[4] que tem origem no grego “demokratia”, de “demos“ (pessoas simples) + “kratos“ (governo, força) - , à melhor forma de governo. Mas a versão de democracia em vigor é a democracia representativa.

A sociedade, nos órgãos políticos que ergue com o acordo dos cidadãos, consente na representação através de eleitos, representantes da sua vontade. A liberdade forma essa eleição e a chefia faz-se na base do consentimento.

Portanto, a dignidade humana exige a possibilidade do sufrágio livre e o cumprimento pelos seus representantes do acordo que suportou a sua eleição.

A dignidade humana exige o sufrágio livre, pois reclama a devolução pelos escalões intermédios e de direcção dos partidos do poder de candidatura livre aos órgãos partidários e do Estado em vez da nomeação, ou eleição limitada a uma lista única ou curta dos candidatos por estruturas de direcção locais, regionais e nacionais.

A dignidade humana exige o cumprimento do acordo entre eleitos e eleitores que esteve na origem da eleição. A eleição dos representantes é feita no compromisso, solene através do sufrágio, de realização das promessas que levaram ao voto dos eleitores. O povo vota para a realização desta e daquela decisão, e não doutra ou daqueloutra. A violação do compromisso eleitoral de realização de decisões, não pode ser resolvida na próxima eleição, pois concerne ao mandato anterior. É tarde.

Mas não é só conteúdo do contrato de eleição que importa respeitar, mas também a forma de exercício do cargo que tem de se conformar com as regras que a sociedade institui nas constituições políticas e nas leis. Já recomendava o Papa Leão XIII: “Façam os governantes uso da autoridade protectora das leis e das instituições”[5]. A corrupção, não só da vontade dos eleitores desrespeitada após a eleição, com a comum desculpa da alteração das circunstâncias ou desconhecimento da situação real do poder, mas também do exercício do poder com o abuso do cargo para obtenção de vantagens particulares, constitui uma usurpação dos mandatos e deve ser resolvida de modo eficaz. Não tem sido.

A dignidade humana requer uma forma de democracia que resolva os problemas da democracia representativa: a democracia directa.


3. Democracia Directa
A necessidade da democracia directa resulta da obsolescência da democracia representativa.


3.1. A obsolescência da democracia representativa
A democracia representativa é um sistema de soberania do povo através de representantes eleitos pelos cidadãos. A democracia representativa quis-se, além disso, pluralista, por permitir a participação das diversas ideias e grupos da sociedade.

A democracia representativa é apenas uma das formas possíveis de democracia. Se recuarmos a Atenas e a Roma, encontramos formas de democracia mais directa, ainda que restrita a sectores limitados da sociedade.

A representação tem sido usada como uma saída viável para a utopia democrática, um sistema político onde o poder político reside em cada cidadão. A eleição de cidadãos encarregados, pela maioria, para representar a vontade dos demais, constituíu-se com uma solução possível para a questão democrática: todos participariam do poder, através da eleição periódica por votação em partidos organizados para representar as ideias e vontades dos vários grupos sociais.

Para equilibrar e garantir o cumprimento dessa representação, tem de funcionar a divisão dos poderes, traçada desde Platão[6], Aristóteles[7], Políbio[8] e Cícero[9] aos modernos James Harrington[10], John Locke[11], Montesquieu[12] e James Madison[13] – poder legislativo, poder executivo e poder judicial - cada um assumindo funções próprias, limitando e fiscalizando os outros. Todavia, essa separação formal é prejudicada pela prática consolidada de controlo do poder legislativo pelo poder executivo, através da maioria formada que lhe dá origem, seja por um só partido, seja por uma aliança de vários partidos, e pela prática contemporânea de controlo do poder judicial pelo mesmo poder executivo. Isto é, os mecanismos formais da democracia representativa, os tais “balances and checks”[14], a separação de poderes de Montesquieu[15], não funcionam.

A intermediação dos partidos e dos seus dirigentes teria de ser instrumental, isto é, concorrer para a representação popular e não para a seriação dos candidatos e exercício do poder do Estado em função dos interesses dos dirigentes. Aqui reside o nó górdio da degradação da democracia representativa.

O imbróglio contemporâneo da democracia representativa está na eleição e na representação.

Está, em primeiro lugar, na eleição porque os partidos monopolizam a escolha dos candidatos às eleições, tornando muito difícil, pela determinação absurda do número de eleitores necessários e procedimentos, a apresentação ao sufrágio por independentes, e porque a escolha intra-partidária dos candidatos é realizada pelos directórios locais, regionais (distritais) e nacionais. A escolha dos candidatos não cabe aos militantes mas aos dirigentes que estes elegem. A escolha dos dirigentes, já eleitos por sindicatos de votos familiares e de interesses, é realizada autonomamente por estes, com raras consultas prévias aos militantes, na base da troca de favores e de cargos futuros. Na prática, portanto, o eleitor não escolhe o candidato que deseja, mas o candidato que o directório partidário respectivo lhe impõe.

Está, em segundo lugar, na representação porque os eleitos têm o privilégio de exercer os cargos autonomamente da vontade de quem o elegeu e sem controlo efectivo do seu exercício, pela subordinação do poder judicial ao poder político. A autonomia do candidato da sua base eleitoral é favorecida pelo sistema proporcional de eleição para o parlamento (em vez do sistema eleitoral misto, com circunscrições que elegem cada uma um só deputado e uma circunscrição nacional que garanta a representação das forças políticas mais pequenas) que torna os eleitos dependentes do partido. As desculpas do desconhecimento da situação da instituição ou da alteração das circunstâncias são usadas para justificar decisões exactamente opostas às promessas realizadas antes da eleição e não existe nenhum mecanismo eficaz de cassar juridicamente o mandato. O garantismo que funciona a favor do acusado, e não do povo, e a demora do sistema judicial tornam quase impossível a perda de mandatos decidida pelos tribunais, mesmo quando há iniciativa política. Por outro lado, não há qualquer processo de cassação eleitoral do mandato (recall election) que permita o lançamento de uma iniciativa, assinada por um número de eleitores necessário, que leve ao voto popular de remoção de um político do seu cargo.

A democracia representativa tornou-se obsoleta pela corrupção que a manieta, pela evolução tecnológica e pela ânsia popular de democraticidade.

Comecemos com o que temos de acabar: a corrupção.

A vontade do povo não conta. As eleições deixaram de ser a selecção dos melhores para se tornarem a escolha dos menos maus, uma ordenação de medíocres na degradante escala da corrupção moral. Há políticos íntegros, mas são afastados dos postos de decisão e, na sua maioria, parecem, forçados pela conveniência, a conviverem com o crime.
O medo dos dirigentes do incêndio nos seus rabos de palha é a garantia da cumplicidade. Em Portugal, a democracia continua a ser pisada por uma classe de dirigentes, dominante no Estado, autora e parceira do Mal, impune à justiça e imune à lei. O primado do Direito é substituído pelo primado do poder.

A direcção do Estado - entendido na sua forma ampla, incluindo políticos, partidos, dirigentes da administração pública, órgãos autárquicos, media, alta finança, etc. - vive dentro de muralhas impenetráveis, num castelo fechado à sociedade civil, um reduto em que a corrupção é aceite como facto banal, erigida a regra consuetudinária, questão sem relevo face à impunidade de crimes maiores. Políticos acusados de corrupção material e sob suspeita voltam aos lugares cimeiros. A política transformou-se numa actividade com uma amoralidade própria, sem respeito da moral em vigor na sociedade civil. À semelhança do Doppio Stato italiano, Portugal é agora um país duplo: poder sem vergonha e povo envergonhado.

A corrupção, a imunidade e impunidade dos políticos resultam do seu domínio das estruturas partidárias locais e nacionais e controlo dos media tradicionais (TVs, rádios e jornais nacionais e locais) mediante capatazes e negócios, e do controlo sobre o sistema judicial, inclusivé sobre sectores independentes das magistraturas.

A liberdade de informação nos media tradicionais é limitada pelos editores de confiança. A liberdade de expressão é coarctada pelo poder legislativo. Os delitos de opinião são perseguidos pelo poder judicial, sob a pressão do poder político para que sejam investigados de modo prioritário. Os próprios media tradicionais, com raras excepções, servem os ataques dos aflitos contra presumidos delitos de opinião. A blogosfera, com a vantagem de estar territorialmente localizada no estrangeiro, é objecto de ataque judicial e dos media antigos por causa da liberdade de que ainda vai usufruindo.

A comédia trágica das decisões dos dirigentes políticos já deixou de provocar o riso do povo para só lhe causar desdém e repulsa. Os pactos de regime são percebidos pelo público como a essência da conservação da ruína do sistema. O Estado deixou de ser uma pessoa de bem.

A acusação chocha de justicialismo, que por vezes se atira contra esta reacção legítima aos abusos, cheira ao mofo podre dos salões sujos, dos gabinetes pestilentos e das antecâmaras fétidas, onde pataca-a-mim-pataca-a-ti se repartem orçamentos, discutem comissões, atribuem tachos, combinam abusos, comercializam favores, decidem manchetes, orquestram campanhas, arquivam processos, perseguem cidadãos. A corrupção.

Porque o único processo de mudar o sistema é expor a corrupção. As práticas corruptas, já consuetudinárias, no Estado português só se mudam com a exposição do Mal. Como a corrupção domina os aparelhos partidários, instâncias de poder do Estado e grupos de pressão, e o sistema mediático tradicional está quase todo controlado, de forma directa e indirecta, pelo Governo, só a cassação pública dos corruptos, através da evidência dos seus crimes, pode reformar o sistema. No estertor, o sistema convoca os servos do ex-quarto poder e tenta resistir. A morte está anunciada, mas o sistema é eterno enquanto dura.

O sistema não se está a aguentar com a denúncia dos abusos e, por isso, reage, procurando a punição - pessoal, familiar, profissional, económica, política e judicial - dos cidadãos deste tempo novo. Só a verdade liberta.

Passando agora pela tecnologia, modo e instrumento de evolução da sociedade humana.

A tecnologia acabará por transformar o sistema - e rapidamente se o povo impuser a sua vontade própria à adesão clubística incondicional que agora mantém o limbo e o inferno. A reforma do sistema - e o desenvolvimento! - demorará mais, se o povo não abandonar a resignação a organizações que funcionam de modo anti-democrático e a personagens corruptas. Não obstante, mesmo que essa consciencialização do erro de transpor para a política o fanatismo clubístico e da separação da sociedade em castas - a dos políticos e a do povo - se atrase, a mudança que a tecnologia impõe, é inevitável. O problema é que não podemos esperar que o equipamento tecnológico resolva o que pertence aos homens fazer. Pois, a demissão do dever de mudar provoca um sofrimento e atraso intolerável à sociedade.

E chegando à questão da ânsia popular de democraticidade.

A ânsia popular de democraticidade decorre da lenta emancipação do povo. Há uma consciencialização lenta que demorou e que finalmente se consolida. A emancipação política é um produto das condições de aumento e alargamento da instrução. O povo quer participar da política, nas decisões e no exercício político. Entende que a política é uma actividade demasiado importante para ser deixada apenas aos políticos.

Não é mais possível a manutenção da realpolitik de cariz ditatorial, descontrolada, cínica, alheia à informação e opinião do povo. Não se pode admitir uma farsa de razão de Estado que aliena o povo num delírio perigoso que chega a admitir, à outrance, o juízo desavergonhado de oportunidade judicial sobre factos jurídicos escandalosos!... Como se determinado crime não pudesse ser investigado com a justificação de que não é oportuno…

No entanto, só é possível recuperar a democracia (o poder do povo), usurpada pelos representantes, com a denúncia desses níveis intermédios anti-democráticos que administram o controlo e filtram a informação. Não é possível a mudança de protagonistas neste sistema político blindado. A esmagadora maioria dos homens e mulheres do aparelho, autores, cúmplices e servos da corrupção moral, não aceitam a reforma que os eliminaria do poder. Por isso, precisamos de um novo sistema político. É urgente a reforma do sistema político para a implantação da democracia directa.

Para sair do beco da casta política, em que Portugal vive, temos de reconverter o sistema político, tornando a democracia representativa mais directa. Trata-se de desintermediar a política e assegurar maior democraticidade na eleição. Desintermediar a política dos caciques, dinossauros e jotinhas locais, distritais e nacionais, de bolsos cheios de fichas de militantes familiares (pais, sogros, filhos, avós, tios e primos...), arvorados em grandes eleitores, reis e fazedores de reis, que garantem o poder das estruturas locais e, por aí, controlam as distritais e elegem os presidentes dos partidos, e vice-versa, sem uma escolha efectiva feita pelo povo. E assegurar maior democraticidade na representação com o respeito da vontade popular, o exercício escrupuloso dos cargos e a autonomia do poder judicial.


3.2. A novidade da democracia directaPara resolver a obsolescência da democracia representativa é necessária reformá-la e instituir a democracia directa[16].

A democracia directa que proponho é uma forma de governo na qual a soberania pertence realmente ao povo que elege livremente os seus representantes, delimita o exercício do seu mandato e participa no processo de decisão política. Na sua versão utópica, a democracia directa não teria sequer representantes. Na sua versão exequível, aquela que defendo e de aqui trato - e que alguns chamam, semi-directa -, democracia directa é um sistema de governo que radica no povo o poder de decisão: reduz o arbítrio de decisão dos graus intermédios de poder partidário, alarga a possibilidade de eleição dos representantes e condiciona a acção dos eleitos ao mandato popular. Os EUA e Suíça utilizam modelos mitigados de democracia directa.

Os representantes ficam obrigados ao mandato que lhes foi confiado pelos eleitores, em vez de poderem seguir durante o período do exercício do cargo apenas a sua vontade. O poder é exercido pelo povo através da livre escolha dos representantes, do cumprimento estrito pelos eleitos do mandato popular e da própria intervenção através de referendos e iniciativas legislativas dos cidadãos.

A livre escolha dos representantes verifica-se com a realização de eleições primárias nos partidos para os diversos cargos internos, autárquicos, deputados e presidente da República, às quais podem concorrer militantes apoiados por listas subscritas por um número suficiente de eleitores (mas não o absurdo número de 10% dos militantes!...); e com a facilitação burocrática e no número de eleitores de candidatura de cidadãos independentes.

O cumprimento estrito do mandato popular verifica-se pela criação de um sistema eleitoral maioritário que desloque o candidato da obediência ao directório partidário, definição clara das promessas eleitorais, a publicação do registo de votação e pela possibilidade da cassação do mandato em caso de desrespeito pelo mandato confiado. A desconexão entre o eleito e o eleitor passado o momento do sufrágio, e a sua autonomia para o mandato, é um princípio postulado por Edmund Burke[17] que tem servido para o desprezo dos eleitores, remediado apenas no sufrágio seguinte, quando é possível. O que Burke disse aos eleitores de Bristol após a eleição para o parlamento foi:
“Certamente, Senhores, a felicidade e glória de um representante deveriam ser viver na mais estreita união, na correspondência mais próxima e numa comunicação sem reserva com os seus eleitores. (…) Mas a sua opinião neutral, o seu juízo maduro, a sua consciência iluminada, ele não a deve sacrificar a vós, a qualquer homem ou qualquer conjunto de homens. Isso ele não deriva do vosso prazer – não, nem da lei ou da Constituição. São um depósito da Providência, pelo abuso do qual ele responde. O vosso representante deve-vos, não apenas a sua indústria, mas o seu juízo, e trai-vos, em vez de vos servir, se o sacrifica à vossa opinião. (…)
(M)as instruções impositivas, mandatos emitidos, que o deputado estaria amarrado cegamente e implicitamente a obedecer, votar e argumentar, ainda que contrário à mais clara convicção do seu juízo e consciência – isso são coisa absolutamente desconhecidas das leis desta terra e que resultam de um erro fundamental dos preceitos e métodos da nossa Constituição.
O Parlamento não é um congresso de embaixadores de interesses diversos e hostis, que cada um deve sustentar, como agente ou advogado, contra outros agentes ou advogados; o Parlamento é uma assembleia deliberativa de uma nação, com um interesse – o do conjunto – onde não devem orientar-nos os propósitos e preconceitos locais, mas o bem comum, que resulta da razão geral do todo. Vós, realmente, escolhestes um deputado; mas quando o escolhestes, ele não é o deputado por Bristol, mas membro do Parlamento.”
[18]

Burke, um conservador, excluía qualquer valor acima do serviço da consciência, um “depósito da Providência” divina, e da nação. Todavia, parece mais simples que em vez de contrariar o que presume ser a vontade dos eleitores, o representante se demita para evitar vergar a sua consciência e a sua própria vontade. O mandato foi-lhe delegado – e pertence – ao povo; não lhe foi depositado para fazer o que entende, guiado pela graça da iluminação divina. No plano ideal, compreende-se o postulado de Burke, mas a prática da democracia representativa com o sistema eleitoral proporcional, faz derivar a ordem não do comando da consciência ou do objecto da nação, mas da ordem do partido, muitas vezes sujeito à satisfação de compromissos de financiamento. O postulado de Burke deixou de ser viável para o serviço moral do povo e do Estado.

Os referendos, que também podem ter origem nos próprios eleitores através de petições, e iniciativas legislativas dos cidadãos que o parlamento deve analisar, constituem formas de intervenção legislativa directa dos cidadãos, que devem ser promovidas por contribuírem para a participação popular na política.

Porém, não se confunda a democracia directa com uma democracia participativa indirecta, através de grupos de influência e pressão com maior acesso à informação e aos meios de poder, como a experiência dos orçamentos participativos e instrumentos semelhantes de atribuição de poder a instituições específicas e seleccionadas da sociedade civil. Essa participação na decisão através de grupos influentes, e não directamente dos cidadãos através do seu voto, levaria, apenas, a maior arbítrio, pois não é com o deslocamento do poder dos partidos para organizações sectoriais e programáticas, escalonadas pela sua conformidade politicamente correcta, que se atinge a democracia real. Na prática, essas organizações disputariam o poder e influenciariam as decisões cuja raiz tem de ser efectivamente o cidadão. Essa democracia participativa não se distinguiria do modelo da intervenção dos lóbis de que a sociedade se queixa. E não é com a substituição de uns lóbis por outros, acrescida até da distribuição do poder por esses novos lóbis, que a democracia melhora.

A democracia directa em que acredito, não é apenas uma democracia referendária, mas um sistema político mais abrangente, com regras de maior democraticidade para a eleição e exercício dos cargos. Esta formulação da democracia directa, não elimina a representação política, mas responsabiliza-a, ao mesmo tempo que devolve a escolha efectiva ao povo.

A renovação do sistema político em direcção à democracia directa é delicada, pois o perigo de instrumentalização é forte. Mas a democracia directa não terá menos controlo do exercício dos mandatos do que a democracia representativa. Pelo contrário, exige uma fiscalização mais próxima e frequente do exercício dos cargos, transparência dos actos, sanções automáticas para incumprimento dos mandatos, separação real dos poderes e outras garantias de cuidado e prudência na administração.

O povo quer ter uma participação maior nas decisões do Estado e reclama o respeito da sua vontade, não se conformando com a velha soberania dos mandatos durante o longo prazo da legislatura. Não é já suficiente confiar o Governo a um partido para quatro anos, com liberdade plena para tomar decisões contra a vontade do povo.

A evolução tecnológica já permite, aliás, através da Internet, a consulta dos cidadãos para decisões de relevo – a consulta constante dos cidadãos é utópica. Apesar disso, veja-se o projecto australiano de democracia electrónica do Senator On-Line[19] em que o representante legislativo vota conforme indicação dos seus constituintes.

O costume, que se começa a consolidar, das derrotas das eleições intercalares fazerem cair os governos por causa da convicção de falta de legitimidade, é já um sinal da intervenção popular extra-sufrágio quadrianual, tal como é, ainda mais frequente a consulta sistemática através de sondagens de opinião de amostra única ou de painel que provocam consequências na condução política dos Estados.

Ao contrário do que displicentemente se veicula, não há um afastamento dos cidadãos em relação à política, salvo da política velha e relha, mas um aumento da vontade de participação nas decisões de governo que não é correspondido pela elite política instalada. Em vez de desinteresse dos eleitores, há marginalização do povo.


3.3. Ideias práticas de aplicação da democracia directa
A democracia directa é um sistema e um processo. Algumas sociedades já adoptaram bastantes medidas de democracia directa, outras não lhe dão conteúdo formal e mecanismos de execução, outras até resistem a introduzir mecanismos de maior democraticidade.

Nesta conferência não há espaço para desenvolver em detalhe essas ideias. Mas ficam aqui enunciadas algumas ideias práticas para aplicação da democracia directa:
  • Transparência e escrutínio das decisões dos eleitos, nomeadamente:
    .....Publicação em Diário da República de todos os actos administrativos;
    .....Facilitação de escrutínio pelos cidadãos das decisões, processos e resultados da decisão administrativa;
    .....Obrigação de discussão pública das decisões de maior relevo, nomeadamente daquelas que envolvam investimentos acima de determinado valor;
  • Tornar o processo legislativo, da Assembleia da República e do Governo, mais transparente (conferências de líderes e comissões especializadas) escrutinável e, com possibilidade de intervenção real dos cidadãos e organizações da sociedade civil;
  • Contratação pública mais clara em maior restrição da excepção de negociação particular de contratos com a administração pública acima de determinado valor;
  • Responsabilização pessoal dos eleitos pelo desempenho do cargo e desrespeito dos mandatos, nomeadamente despesas e contratação, com perda automática de mandato após apuramento da ilegalidade ou irregularidade;
  • Adopção do sistema eleitoral misto nas eleições para o parlamento, com circunscrições de eleição unipessoal e uma circunscrição nacional que garanta a eleição de representantes dos partidos mais pequenos;
  • Prestação de contas (accountability) pelos eleitos;
  • Certificação de contas e estatística por entidades independentes e da União Europeia;
    Registo de interesses dos eleitores e candidatos e de declarações de rendimentos com perda automática de mandato para incumprimento ou falsas declarações;
  • Representação dos eleitos em vez da co-optação de políticas palacianas;
  • Separação real dos poderes: legislativo, executivo e judicial;
  • Independência verdadeira e consequente do poder judicial e maior autonomia com imposição de sanções pelo Tribunal de Contas;
  • Aprofundamento das garantias constitucionais sobre o exercício do poder;
  • Cassação de mandatos por incumprimento, mediante votação no caso de incumprimento eleitoral e automática no caso de infracção grave;
  • Eleições primárias nos partidos para todos os cargos electivos internos, do Estado e autarquias;
  • Audição pública dos candidatos a nomeações políticas;
  • Facilidade de apresentação de candidaturas independentes e desburocratização do respectivo processo;
  • Direito de iniciativa popular de propostas de lei, com a apresentação ao Parlamento e a referendo obrigatório de petições assinadas por um certo número de cidadãos, e aproveitamento de eleições para cargos (Parlamento, presidenciais, autarquias e Parlamento Europeu), para consultas populares;
  • Clareza de financiamento e controlo das contas das organizações políticas pelo Tribunal de Contas, com sanções de perda de mandato e penais para os casos de incumprimento;
  • Supressão da imunidade política para qualquer facto exterior ao mandato político;
  • Liberdade efectiva de informação e de opinião dos cidadãos.

A democraticidade interna dos partidos merece uma consideração especial, pois é aí que está um dos problemas maiores do regime. Deve haver uma reforma da lei dos partidos políticos e da sua aplicação que passe a garantir:
  • regras para tornar mais fácil o acesso aos partidos;
  • possibilidade de recurso da adesão de militante através da estrutura central dos partidos;
    escolha dos candidatos a presidentes de junta, de câmara, deputados e presidente, através de eleição directa pelos militantes;
  • transparência e escrutínio do registo e manutenção dos militantes nos órgãos nacionais;
    regras estritas de financiamento partidário com penalização pessoal dos dirigentes em caso de incumprimento de legislação;
  • regras rigorosas de eleição interna e de candidatos: marcação, publicitação e escolha;
  • facilitação da apresentação de candidaturas aos órgãos internos e a candidaturas autárquicas e nacionais, na burocracia e no número de militantes necessários.

Contudo, como sabemos, não basta edificar de forma determinada uma legislação: é preciso executá-la. Isto é, tem de existir regulamentação eficaz, com direitos, obrigações e sanções, para a pôr me prática e definir órgãos que a fiscalizem.


3.4. A questão dos meios
A questão dos meios é decisiva para a avaliação e criação de condições objectivas de mudança. Neste ponto, entra a tecnologia como aliada desta transformação política, com especial relevo para a Internet, mesmo nos regimes políticos mais ditatoriais e fechados. A rede (net) permite a exuberância técnica e moral da cidadania.

Acabou o paradigma salazarista de informação. Já não se consegue governar segundo a velha máxima salazarista de que "politicamente, só existe o que o povo sabe que existe". O paradigma clássico de comunicação política estava realmente obsoleto e foi destruído pela avalanche da procura (o cidadão-repórter). O cidadão-(e)leitor (e e-leitor) ganhou uma costela de repórter. Hoje, o povo pode livremente procurar, editar, publicar, comentar, difundir e amplificar informação para milhares de leitores, gratuitamente, em torrente contínua, rápida, funda e aguda, sem a necessidade de vencer o filtro espesso dos media.

Aquilo a que chamámos Páscoa da Cidadania de 2007 - difusão do Dossier Sócrates (percurso académico e utilização do título de engenheiro por José Sócrates) - representou a viragem, a primeira ocasião em que a obsolescência desse modelo se tornou evidente e se manifestaram os efeitos poderosos da revolução tecnológica da informação e comunicação sobre o sistema político e social português. Do blogue Do Portugal Profundo, passou aos outro blogues, depois os fóruns de opinião e temáticos, daí para os mails, a rua – e, in extremis, os reboques dos jornais, das rádios e TVs, quando se tornou insuportável manterem o silêncio ensurdecedor...

Os cidadãos libertaram-se do jugo da intermediação e assumiram a cidadania, a responsabilidade de intervir na polis, com as suas capacidades disponíveis: a informação e a comunicação. Nesta luta por maior liberdade e democracia a blogosfera tem o papel principal e tornou-se incontornável ao sistema político-mediático português.

Estando os media tradicionais (jornais, rádios e TVs) debaixo do controlo directo e indirecto, através de dependências várias, do Governo – e o Governo Sócrates dispõe de uma força de controlo sobre os media tradicionais como nunca se viu depois do 25 de Abril de 1974 – importa contarmos, para a mudança, com os meios alternativos:
  • Blogues
  • Fóruns
  • E-mail
  • SMS
  • A caixa de ressonância dos media tradicionais

Os regimes que se fecham definham por falta de ar e luz, e tudo o que se oprime acaba por rebentar. Na Páscoa da Cidadania de 2007, o regime sofreu um abanão, mas importa aprender para que se incorra em revoltas semelhantes ao cacelorazo argentino de 2001, o 13 de Março de 2004 em Espanha, as émeutes francesas do Outono de 2005 e os protestos húngaros do final de 2006.

Ora, a resposta que o sistema político deve dar não é o endurecimento da sua política de controlo dos media tradicionais, das agências de regulação, das polícias e das magistraturas pelo poder executivo, mas a humildade da adaptação à vontade popular nesta nova realidade tecnológica informativa e comunicacional. É essa mudança da política, em todos os partidos, que o povo reclama agora. Essa vontade popular de mais democracia - democracia directa - não pode ser negada.


4. ConclusãoCreio que ficou provado o propósito da minha comunicação: a relação entre dignidade humana e democracia directa e explicado o conceito e aplicação prática da democracia directa como nova forma de governo.

O caminho da valorização da dignidade humana, condição pessoal e social do indivíduo, conduz à democracia directa, convocada pela evolução tecnológica e pela vontade popular de democracia real. Não é uma tarefa para um partido, mas para um movimento alargado da sociedade civil que promova a reforma do sistema político e crie um meta-paradigma de mudança no qual se reconcilie o povo com o Estado e se renove a esperança.


Notas de fim de texto:[1] Este texto usa excertos de posts do meu blogue Do Portugal Profundo sobre a democracia directa.[2] Papa Paulo VI, Carta Encíclica “Populorum Progressio” sobre o Desenvolvimento dos Povos, 3-3-1967, § 87, http://www.vatican.net/holy_father/paul_vi/encyclicals/documents/hf_p-vi_enc_26031967_populorum_po.html.[3] Cf. Online Etimology Dictionary, http://www.etymonline.com/index.php?search=dignity&searchmode=none, 8-11-2007.[4] Online Etimology Dictionary, http://www.etymonline.com/index.php?search=democracy&searchmode=none, 8-11-2007[5] Papa Leão XIII, Carta Encícilica “Rerum Novarum” sobre a Condição dos Operários, 15-5-1891, § 35 (http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html).[6] PLATÃO (c. 428-347 a.C.), Leis (http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?doc=Perseus%3Atext%3A1999.01.0166, edição em inglês)[7] ARISTÓTELES (c. 384-322 a.C), Política (http://classics.mit.edu/Aristotle/politics.html, edição em inglês).[8] POLÍBIO (c. 203-120 a.C.), Histórias ou Ascensão do Império Romano (http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?lookup=Plb.+toc, edição em inglês ou grego).[9] CÍCERO, Marcus Tullius, De Re Publica, c. 54-51 a.C. (http://oll.libertyfund.org/index.php?option=com_staticxt&staticfile=show.php&title=545, edição em inglês)[10] HARRINGTON, James, The Commonwealth of Oceana, 1656 (http://www.gutenberg.org/etext/2801)[11] LOCKE, John, A Essay Concerning the True Original, Extent and End of Civil Government, 1689 (http://jim.com/2ndtreat.htm)[12] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, De l´Esprit des Lois, 1748 (http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/de_esprit_des_lois_tdm.html) [13] MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John, Federalist Papers, 1787-1788 (http://www.gutenberg.org/etext/18).[14] MADISON, James, Federalist Paper no. 9 em MADISON, James, HAMILTON, Alexander, JAY, John, Federalist Papers, 1787-1788 (http://www.gutenberg.org/etext/18).[15] MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, baron de La Brède et de Montesquieu, De l´Esprit des Lois, 1748 (http://classiques.uqac.ca/classiques/montesquieu/de_esprit_des_lois/de_esprit_des_lois_tdm.html)

[16] Sobre a democracia directa veja-se:
  • ACE Project – Focus on Direct Democracy (
http://aceproject.org/ace-en/focus/direct-democracy

)

  • C2D – Research and Documentation Centre on Direct Democracy (http://www.c2d.ch/
  • )
  • Citizen Power Magazine – Direct Democracy for the 21st Century http://www.citizenpowermagazine.net/)
  • Initiative and Referendum Institute – University of Southern California (http://www.iandrinstitute.org/)
  • International Institute for Democracy and Electoral Assistance (http://www.idea.int/elections/dd)
  • KAUFMANN, Bruno e WATERS, M. Dane (eds.), Direct Democracy in Europe: A Comprehensive reference guide to the initiative and referendum process in Europe, Initiative & Referendum Institute Europe (IRI – Europe), Carolina Academic Press, Durham, 2004 (http://www.iri-europe.org/documents/almanac_content.pdf)
  • Lista Partecipada (http://www.listapartecipata.it/
  • )
  • SOL - Senator On Line (http://www.senatoronline.org.au/)
  • Wikipedia – Direct Democracy (http://en.wikipedia.org/wiki/Direct_democracy)

  • [17] BURKE, Edmund, Speech To The Electors Of Bristol At The Conclusion Of The Poll, 3-11-1774 (http://www.ourcivilisation.com/smartboard/shop/burkee/extracts/chap4.htm)[18] BURKE, Edmund, Speech To The Electors Of Bristol At The Conclusion Of The Poll, 3-11-1774 (http://www.ourcivilisation.com/smartboard/shop/burkee/extracts/chap4.htm, tradução minha)
    [19] Senator On-Line (http://senatoronline.com.au/)

    terça-feira, 19 de junho de 2007

    Desta vez

    Actualização das 22:59 de 20-6-2007: noticiou há pouco a SIC-Notícias que eu fui hoje ouvido como arguido sobre o Dossier Sócrates. Não é verdade que eu já tenha sido inquirido. Quanto a pormenores sobre os depoimentos que tenho de prestar em breve, os leitores compreendem que não devo dar detalhes. Actualização pelas 13:30 de 20-6-2007: Há pouco, num furo de Carlos Rodrigues Lima, o Expresso Online revelou que "José Sócrates apresentou uma queixa-crime contra o blogger António Balbino Caldeira devido ao conjunto de textos que este professor de Alcobaça escreveu" sobre o Dossier (utilização do título de engenheiro e percurso académico do primeiro-ministro).
    Do Portugal Profundo Banner criado por gentileza do Adpdeites
    Desta vez, tive sorte. Telefonaram apenas (com faxes autênticos depois a confirmar). Desta vez, ao contrário de 24 de Outubro de 2004 (veja-se também este link), não bateram à porta da minha velha casa, em Alcobaça, pelas 7:00, ainda o sol não tinha nascido, dois inspectores da Polícia Judiciária e um procurador-adjunto por causa da suspeita do gravíssimo crime de... desobediência simples (do qual fui absolvido depois em tribunal, veredicto confirmado pela Relação de Coimbra) - não fui acusado de qualquer violação de segredo de justiça. Não pensei que fosse o padeiro - aliás, se à hora do lobo oiço vozes no patim e o batente soa, nunca mais penso que seja o padeiro... Eu não abri a porta estremunhado, um olho aberto, outro fechado, nem divisei três vultos. Não responderam que eram da Polícia Judiciária. Não começaram por entrar - e só se percebe, acreditem, o que é alguém entrar em vossa casa sem pedir licença a primeira vez que se sofre essa humilhação sem poder reagir - e me mostraram o mandado da juíza (que, todavia, não os autorizava a apreender-me correspondência...). Desta vez, não recebi o destaque invulgar de vir um procurador-adjunto a minha casa chefiar ele próprio essa busca crítica, por causa da suspeita de uma "bagatela penal", como disse um amigo meu - e mesmo dessa fui ilibado. Contudo, não era suspeito de violar crianças, de matar alguém, de roubar, de traficar droga: era suspeito de ter desobedecido a um despacho judicial de proibição de divulgação do processo de pedofilia da Casa Pia (alegadamente por causa da protecção das vítimas, cujos nomes aliás sempre omiti), cujo julgamento já tinha sido marcado, um despacho que não me havia sido comunicado - mesmo depois do inquérito pedi para ver o tal despacho e foi-me negado porque o próprio despacho... estava em segredo de justiça - e só vi no dia da sentença que me absolveu. Todavia, se o propósito da busca era determinar que era mesmo eu quem escrevia e editava o blogue, era fácil de reparar que sempre assinei, desde o início em Agosto de 2003, todos os posts como "António Balbino Caldeira" e publiquei sempre o meu próprio e-mail. Desta vez, não lhes pedi para vestir umas calças, já que não os queria atender em pijama. Não me perguntaram, em tom solene, quantas pessoas estavam em minha casa. Não os avisei que minha mulher ainda descansava no quarto, como quem lhes fazia notar que tivessem a decência de a respeitar. Desta vez, não os levei ao escritório exíguo onde escrevo. Não lhes abri o computador, com a intenção de lhes mostrar a pasta onde guardo os meus escritos, para mo desligaram imediatamente, que "podia ter uma instrução automática para formatar o disco..." Não lhes indiquei as pastas de arquivo com etiqueta "Política" (de 1 a 7), folhas bem arquivadas pois era por causa de política que vinham buscar a casa onde vivo e que foi de meus avós. Não lhes mostrei os papéis, não me questionaram sobre a sua origem, não me confiscaram os apontamentos manuscritos que tinham contactos de jornalistas nem ignoraram ostensivamente uma folha com o contacto de um assessor de tribunal (a quem tinha pedido legitimamente o link de uma página da internet de uma dado acórdão já público). Desta vez, os meus dois filhos não apareceram assustados na sala da minha pobre casa, sem que eu lhes pudesse explicar quem eram aquelas pessoas. Só consegui fazê-lo passados dois dias - perante o eco duro da pergunta consecutiva do mais novo, que repetia a cada explicação minha: "mas... pai: tu fizeste algum crime?..." Não é fácil sossegar os olhos francos de uma criança que vê nos polícias - as crianças não sabem o que são procuradores - os homens que prendem os "maus", que o pai não fez crime algum e que a família tinha sido atingida devido a motivos justos e ao serviço cívico da comunidade, com a preocupação fundamental de defesa das crianças da Casa Pia vítimas comprovadas de abusos sexuais. Se a polícia te buscou, algum defeito te achou... As crianças não conhecem o que é a violência e a desvergonha do sistema. Não obstante, devem ter sentido que sofreram alguma violência na sua intimidade porque a minha filha sentiu-se mal na escola no dia seguinte e telefonaram imediatamente a minha mulher para a levar para casa. Desta vez, não lhes pedi para me ir arranjar que daqui a pouco tinha aulas em Santarém, obtendo a resposta, esclarecedora para a desnecessidade de terem acordado a minha família pelas 7:00 quando o alvo (eu) só saía de casa às 9:00: "o sôtor entra às 10 horas, não é?..." - entrava... Um polícia não surgiu com o meu telemóvel na mão que, depois, não confiscaram - perguntei se era escutado, riram-se... Desta vez, a minha mulher não surgiu na sala, onde, mesmo assim, apresentou um "bom dia" seco, enquanto se dirigia às crianças para que se arranjassem para a escola. Eu não soube depois que lhe tinham revistado o carro dela sem mandado, já com os filhos lá dentro, quando ela se aprestava para seguir para o trabalho. Desta vez, na minha curta sala, onde o retrato sóbrio dos meus avós reclamava outro respeito - em vez da boca de um agente para outro "em princípio, aqui não chove..." - entretanto mais apinhada com mais dois inspectores que se tinham reunido aos outros e ao procurador, ninguém me ajudou a redigir o requerimento a pedir cópia dos ficheiros académicos que dois dias depois... indeferiu - só me entregaram a tese de doutoramento (de que lhes expliquei não ter outra cópia) em CD sete meses mais tarde. Não me levaram o computador para só mo devolverem largos meses depois - o programa de tradução Babylon é que nunca mais funcionou. Eu não fui comprar um computador nesse dia - por imprudência, ainda nem sequer encomendei o próximo... Não tive de dar entrevistas para tornar mais complicado abaterem-me sem consequência. Desta vez, não soube que tinham ido outros dois inspectores à mesma hora (7 horas em ponto, ainda de noite, nesse 27 de Outubro de 2004) a casa de minha mãe, a dois quilómetros do sítio onde eu, casado e com dois filhos, vivo - aliás já não vivia em casa de minha mãe desde que me casei em 1993. Que tocaram à campainha de uma mulher, de 78 anos e paciente cardíaca, mas "recta como o sol" - como dela dizia o meu avô Balbino -, e de uma prima ainda mais idosa, para lhe buscar a casa, com mandado autorizado por uma juíza de instrução - a quem, além de outro, prometo escrever, se cá estiver, no dia em que minha mãe nos deixar - por causa do gravíssimo crime de desobediência simples do filho... A minha mãe não perguntou aos agentes o motivo da busca, tendo acrescentado que, porém, não deveria ser por causa de corrupção ou droga, tendo os polícias, envergonhados, explicado que era "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu"... Depois de uma busca pela casa, telefonaram para alguém - provavelmente o procurador que estava em minha casa e dirigia a busca - e levaram um computador velho de 11 anos, um IBM 433 DX, que ela tinha comprado para os filhos antes de eu me casar e que mantinha lá com o fito que os netos nele se entretivessem, o que faziam muito raramente. A minha mãe que no tempo da ditadura teve, porém, gentileza menor: a polícia agora, em 2004, tinha ido pessoalmente revistar-lhe a casa "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu" em vez da maçada da notificação, em 1973, para comparecer na GNR junto ao Governo Civil de Leiria devido a ter ousado pôr um ministro em tribunal por este ter sancionado um concurso em que havia sido preterida, se julgava com direito e veio a vencer após recurso. Desta vez, não me comovi com o texto que minha irmã, melhor do que eu, gritou em 16 de Novembro de 2004 sobre a violência que foi provocada à nossa mãe "por causa de umas coisas que o seu filho escreveu". Um homem não chora. Desta vez, não consta que tenha sido instaurado o inquérito para demonstrar neutralidade processual e equidistância face ao Horror, para compensar a sistémica vozearia orquestrada queixosa de alegado desfavor. Desta vez, minha mãe não apareceu em casa a chorar por causa de um interrogatório manhoso - já não bastava a busca!! - relacionado com a apreensão que lhe fizeram tal computador, por funcionário judicial indigitado para o trabalho - "minha-senhora-o-seu-filho-disse-nos-que-o-computador-era-dele..." - "se-o-meu-filho-disse..." - "assine-aqui-por-favor..." Pensava eu que ela tinha ido ao tribunal por causa de uma tentativa de roubo que lhe foi feita por uma mulher, toxicodependente, com uma faca, em que sugeriram que desistisse (minha mãe queria até perdoar à mulher...) e, afinal, era para se livrarem da embrulhada da apreensão do computador de que é proprietária que lhe devolveram nessa altura - o que é, no fim de contas, uma simples tentativa de roubo com faca a uma senhora com 78 anos se comparada com a gravidade de uma desobediência simples do filho?... Desta vez, não fui procurar alguém, com um carregador Nokia no bolso, à cautela por causa de alguma eventualidade - e só depois me advertiram que aí não deixam usar telemóvel -, com o propósito de obter uma explicação e a esperança de não o encontrar. Desta vez, não abriram o meu computador sem a minha presença ou do meu advogado, aliás nem reparei em qualquer selo quando por lá o encontrei depois. Um computador com a minha conta bancária e de minha mulher, cartões de crédito, declarações fiscais, passwords, registo de tráfego - além de artigos, trabalhos, lições, exames e notas meus, fotografias da família, escritos de minha mulher, desenhos e jogos das crianças, etc.. Nem vi escarrapachados nos apensos detalhados do processo em cinco volumes grossos, impressos os meus mails, os tais que não estavam autorizados a apreender, e os meus recados do Outlook do tipo da gravidade de mensagens criptológicas como "comprar pneus para o carro". Desta vez, não fui, ainda, a julgamento - mas irei, que não me perdoam a verdade (factos, factos, factos)... - e, portanto, não senti em quem julgava a cólera devida ao grande criminoso que eu era, nem me mandaram calar por ter arriscado a citação do subversivo Padre António Vieira ("se servistes a Pátria..."), nem impedem o meu combativo advogado, Dr. José Maria Martins, de me questionar directamente nem de me fazer certas perguntas inconvenientes, embora no interrogatório me possam exigir que descruze as pernas onde tenha assente algum bloco para escrever. Respeitinho! Há outro caso, porém, só falarei dele só falarei mais tarde. O sistema persegue politicamente os seus opositores por estes pretenderem exercer os seus direitos de cidadania. Mas só sobrevive com a complacência dos órgãos do Estado formalmente encarregues da vigilância dos abusos e a resignação popular. Quatro anos de blogue, quatro processos - deixo um possível, por enquanto, de fora. Tentam tranquilizar-me com o argumento de que o sistema funciona. E eu acredito: o sistema funciona. Garantia dos direitos do cidadão em Portugal? Esta:

    "É que, como é bom de ver, o interesse prevalecente da investigação e eventual punição, por parte do Estado, é manifestamente superior ao dos potenciais ofendidos com a compressão de alguns dos seus direitos, ainda que com expressa garantia constitucional, designadamente os atinentes à vida privada, como o são seguramente os constantes de documentos seus (originariamente pessoais ou não)". [realce meu]

    Extracto do despacho de arquivamento, datado de 13-6-2005, do procurador do Tribunal da Relação de Coimbra do processo de abuso de poder que intentei contra o Estado por causa do tratamento sofrido