Novo naufrágio, a sudoeste da ilha italiana de Lampedusa, com mais 34 mortos, fora os desaparecidos, ontem, 11-10-2013, que se segue a
outro de 328 mortos confirmados, na semana passada, e a outros mais. De mar de união, o Mediterrâneo regressa a
cemitério - de novo. Empilham-se os mortos subsaarianos e do corno de África no trânsito para a Europa, no estreito da Sicília ou de Gibraltar, que crêem um canal direto que os livre dos senhores da guerra e os redima da miséria. Como,
ceteris paribus, na fronteira mexicana dos EUA e nas praias de Cuba. Como disse o
Papa Francisco, em Lampedusa, em 8-7-2013, «a globalização da indiferença torna-nos a todos "inominados", responsáveis sem nome nem rosto» - mas essa indiferença não varre a responsabilidade da nossa carga humana.
Agora, por contradição política,
existe um problema humanitário grave que tem de ser resolvido por outro meio que não o naufrágio ou a expulsão imediata dos refugiados e imigrantes. Porque nem serve esta política europeia de imigração, ainda que com nuances por país, com notificação para tribunal (e clandestinidade) ou centros de detenção e deportação, nem uma política de imigração europeia norte-americanizada, do estilo «
wet foot/dry foot» é humana, porque arrisca um êxodo maior, mais naufrágios e dificuldades de integração. Nem, por mais que se gostasse é viável uma política de portas abertas. A solução não é fácil, mas certamente não deve ser
hipocrítica. Não podem os europeus e os norte-americanos querer que os países vizinhos da Síria, e de outras guerras e fomes, acolham os refugiados e despejar os seus no oceano. Nós, portugueses, ontem emigrantes
a salto para França e Alemanha e hoje
turistas de andaime em Angola e Moçambique, temos uma obrigação moral ainda mais presente, porque não podemos querer um tratamento na casa dos outros que não demos na nossa.
O problema humanitário urgente ocorre porque os povos mais ricos, mais instruídos e mais poderosos, negligenciaram o seu «fardo» (que não é apenas do
«white man», como no poema de Kipling, de 1899) perante os outros, uma responsabilidade que incumbe a cada homem, independentemente da sua pele, cultura ou religião, face ao seu semelhante.
A contradição política é o resultado da hipocrisia politicamente correta. Em fuga à miséria e à insegurança, subsaarianos (magrebinos e asiáticos) procuram a bela Europa da abundância e dos subsídios. Mas os mesmos políticos
politicamente corretos que erguem o Estado socialista, que culminou o Estado social do século XX, são os que, à parte o discurso público humanitário de ajuda ao desenvolvimento e a confissão privada do
eles-que-se-entendam,
in loco, lhes desprezam o sofrimento nos países de origem, com passividade militar, e trocam a exploração económica dos territórios pelo financiamento dos ditadores, e, internamente, lhes fecham as fronteiras e os tratam como gado no mar e nos centros de asilo ou oscilam, ao compasso do metrónomo eleitoral, entre a indiferença e a perseguição.
A autonomia política de territórios cujas fronteiras foram desenhadas a esquadro pelas potências europeias na Conferência de Berlim de 1885, e garantidas a ferro de fogo desde então, separando povos e tribos e forçando convivências culturais e religiosas adversárias, não foi suficiente para a paz e o desenvolvimento.
África tornou-se um corno de corrupção, de guerra e de fome, perante a raison d'État europeia, americana e asiática, numa mistura egoísta de negócio, hipocrisia e desprezo. É na origem que os êxodos se resolvem, através da pacificação e da organização da economia e do trabalho. Mas as potências mundiais, com os EUA à cabeça, abdicaram da intervenção nos territórios sem recursos naturais, e, desde o genocídio do Ruanda e o risco de
Black Hawk Down da Somália, recuaram para um cerco marítimo, no Índico contra a pirataria e no Mediterrâneo sustendo a imigração, com raides esporádicos contra bases terroristas, como os
recentes na Líbia e na Somália, ao mesmo tempo que aliviam a consciência, com o julgamento seletivo em tribunais penais internacionais de líderes e oficiais caídos do poder.
O esforço de
nation building e de exportação da democracia representativa, e a própria intervenção humanitária, desde logo impregnados de avidez de exploração mineral, restringem-se à carne suculenta dos territórios ricos, deixando os cornos do mundo baldios para o fratricídio e o terrorismo. Que dogmatismo ideológico, comunista, socialista ou liberal, pode aguentar um resultado de massacre e de inanição?!... Não há uma
maxima culpa, de que importa penitenciar, quando se ignorou, e ignora, a degeneração brutal dos paradigmas ideológicos na redução ao modelo local despótico do
chefe-que-tudo-manda-e-tudo-tem?...
A
ajuda monetária ao desenvolvimento, principalmente a estatal, apenas sinaliza o interesse perante a opinião pública para aliviar as consciências do povo. Veja-se, a propósito, citado por
D. Soriano no Libertad Digital, de 12-10-2013, o livro
«Dead aid», de Dambisa Moyo, em 2009, no qual a autora explica que a sobreconfiança na ajuda internacional gerou nos países pobres um «círculo vicioso de dependência externa, corrupção, distorção de mercado e maior pobreza, deixando-os sem mais nada do que a necessidade de mais ajuda». Uma grande parte da ajuda estatal é canalizada para os dirigentes corruptos dos Estados e a dependência entranha-se como vício - porém, manda a verdade que se diga, que este não é apenas um problema africano...
O desenvolvimento social carece do desenvolvimento económico e esse deve ser facilitado pelos Estados dos outros continentes - e pelos próprios africanos, quando ascendem a posições de poder ou apoiam os dirigentes. Em vez do
modelo de nós contra o Outro devemos implantar um paradigma de n
ós com o Outro, evitando assim o naufrágio da consciência. À beira de novo tumulto ideológico, mas em circunstância diferente da encíclica
Populorum Progressio, do Papa Paulo VI em 1967, agora, desde que efetiva e justa,
a paz é o novo nome do desenvolvimento.