Esta manhã, à minha porta, bateu um pedinte. Africano, ainda jovem, humilde. Dei-lhe umas poucas moedas que tinha na carteira. Olhou para o saco transparente de pão que o padeiro, de madrugada, costuma deixar pendurado na grade do postigo e perguntou-me: «e pão?». Dei-lhe o pão todo. Precisava mais dele do que a minha família... É a primeira vez que me pedem pão, mesmo pão, querendo pão. Para lá da miséria para sustentar vícios que desperdiçava oferta de comida e roupas usadas, e dos pedintes profissionais com contas no banco, há de novo fome. Gente com fome que pede pão para comer.
O
quinto pacote fiscal do Governo PSD-CDS (não sei se estou a contar menos e peço aos leitores que me ajudem no cálculo...) em quinze meses de administração, anunciado em 3-10-2012, pelo ministro das Finanças, Vítor Gaspar (depois do
falhanço do
quarto pacote, o da diminuição da TSU das empresas à custa da redução dos salários, de 7-9-2012), que «reconhece ser este um «
enorme aumento de impostos», culminando «
50 medidas de austeridade» impostas aos cidadãos, é apenas mais um no caminho do calvário do Estado socialista português. Um pacote fiscal por trimestre, uma tortura fiscal regular. Puxa-se sucessivamente o garrote aos cidadãos e, quando se crê ter chegado ao limite, somos surpreendidos por novos buracos e mais apertos do cinto estatal. A situação degrada-se ao
ritmo argentino de 2001, com a progressiva eliminação da classe média e o esmagamento da classe baixa trabalhadora; caminhamos para um
estallido. As classes médias e baixas não conseguem suportar a descida dos rendimentos e a subida dos
i-erre-esses e
imis, o pagamento das prestações, a escola e a universidade dos filhos, o custo dos transportes. E sabem que depois deste pacote outro se seguirá, num ritmo trimestral de decadência. Que não parará proximamente, ao contrário do que prometeu, em 4-10-2012, o ministro Vítor Gaspar, no Parlamento: a «
troika sairá de Portugal em Junho de 2014». Aliás, o problema prioritário do Estado deixou de ser a dívida para passar a ser o défice: não é possível reduzir a dívida se nem sequer conseguimos reduzir o défice...
A incompetência manifesta deveria obrigar à demissão do Governo. Mas os próprios não querem demitir-se porque ainda há negócios que podem arbitrar e quanto mais durarem no poder mais ganham. O Presidente não demite o Governo, adotando uma
solução Monti, pois padece de fragilidades próprias e
familiares, tem medo e está desorientado: a
bandeira nacional hasteada de pantanas, pelo Presidente Cavaco Silva e pelo divertido presidente da CMLisboa, António Costa, num 5 de outubro de 2012 celebrado à porta fechada, por medo do povo, é uma representação perfeita da degenerescência do poder político em Portugal. A União Europeia e o FMI desprezam a corrupção interna, impõem a colheita de impostos que cubram os empréstimos e os refluxos de dinheiro dos créditos concedidos por bancos estrangeiros aos bancos nacionais, e apoiam quem lhes aplique no País a receita que prescrevem. E o povo oscila entre o lamento e a emigração. Mas os cidadãos não têm de ceder à chantagem política.
O modelo de Estado socialista continua a vigorar em Portugal. E por essa Europa toda - ainda que na Escandinávia tenham sido reformadas as políticas sociais e de imigração, mesmo que ainda gozem da fama injusta de manter a social-democracia de esquerda dos anos 70 e 80. Em Portugal, Espanha, Grã-Bretanha, Itália, Grécia, onde a direita recuperou o poder formal, mantiveram-se as políticas socialistas: fausto dos políticos, corrupção de Estado, nacionalização de prejuízos de bancos, favorecimento de grandes empresas amigas, fomento da preguiça, desperdício de dinheiro, estagnação económica, miséria social.
O caso português é mais grave porque o fomento estatal do ócio, que também abunda na Europa e na América do Norte,
coexiste com a corrupção de Estado. A corrupção de Estado é muito mais grave do que o fausto dos gabinetes ministeriais e o montante cobrado pelos políticos em comissões de negócios, pois inclui à remuneração estatal dos grandes acionistas de empresas falidas, a venda com desconto de participações do Estado em empresas públicas, regimes de preços altos de serviços de telecomunicações, eletricidade e transportes, mediante a contratação de familiares e relacionados para empresas promíscuas com o Estado, a prestação de serviços caríssimos de grandes escritórios de advogados e de bancos de investimento com desperdício dos milhares de juristas e economistas da administração pública, a contratação do tipo endogâmico de parcerias público-privadas com lucros exorbitantes para os privados. Porém, pior do que as comissões dos políticos e do que o custo acrescido desses negócios (a troca do chouriço pelo porco) é a contratação de obras e trabalhos inúteis em detrimento de investimentos e de apoios indispensáveis.
Cada vez que um político se corrompe, há, por causa desse roubo do Estado para proveito pessoal, cidadãos cujos rendimentos diminuem, firmas que fecham e empregados que perdem trabalho, gente endividada que se suicida, crianças e adultos que passam fome, pessoas cujas dores aumentam por não terem dinheiro para remédios e gente que morre por cirurgias adiadas. Cada vez que um político se corrompe, fere e mata, pois com esse roubo provoca mal-estar e morte de concidadãos.
Não podemos iludir-nos, porque os números não permitem concluir outra coisa: aplacar a corrupção não resolve por si só o problema do défice do País. É também necessário mudar de modelo político para diminuir o défice. E se não reformarmos o modelo socialista não será possível a manutenção do País no euro. Mas o combate à corrupção do Estado e das autarquias permitiria reduzir a perda de bem-estar dos cidadãos e restaurar a coesão social de que o País carece. Assim, com corrupção política e com abuso nos subsídios, o que os cidadãos sentem, o que sente a classe trabalhadora pobre e a classe média empobrecida, é uma tremenda injustiça. Não é possível a este regime sobreviver com esta corrupção e este abuso. E com a impunidade dos prevaricadores. Portugal necessita de equidade nos sacrifícios e de justiça.
Estou cético perante a assunção da consciência dos cidadãos de que não pode continuar este modelo socialista de troca de corrupção de Estado por abuso popular. Por muito que queira ver como prioritária a indignação com a corrupção, como na manifestação dos indignados, vejo que, por causa de décadas de imoralidade de modelo socialista (rouba tu, político, à vontade desde que me deixes abusar da teta do Estado), é bastante maior a queixa contra a inevitável austeridade. E, num coro desafinado por múltiplas reivindicações populares de que lhes aumentem o subsídio e não lhes diminuam o rendimento, a recomendação geral é de que a poupança seja feita nos outros segmentos mas jamais no nosso, qualquer que o nosso seja - desempregados, (des)inseridos do rendimento social, reformados dourados, reformados não contribuintes, funcionários públicos, empregados do setor privado. A situação é insustentável.
Ou os cidadãos responsáveis recuperam o poder político com intervenção social ou acontece a revolução - uma forma socialmente cara de fazer reformas inadiáveis. Convinha, por isso, que os instalados se juntassem aos reformadores.
Atualização: este poste foi emendado às 0:37 de 7-10-2012 e 1:52 de 8-10-2012.