quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Chega?

O partido Chega! constitui o fenómeno político de maior projeção na paisagem política portuguesa atual. Não apenas pelos resultados das eleições para a Assembleia da República, de 6-11-2019, e para o Parlamento Europeu, de 26-5-2019 (neste caso, com a formulação Basta!, em aliança com o PPM e CDC), mas pelo ímpeto popular num ambiente de boicote dos média sistémicos socialistas. Merece uma análise ideológica e política.

O sucesso do novo partido radica em primeiro lugar no notável carisma do seu líder, prof. André Ventura, que teve a ousadia de começar a cultivar um terreno baldio na área da direita em Portugal, com um discurso claro e sem medo de perseguições e rótulos, e uma organização moderna nos novos canais de comunicação (internet, Youtube, e outras redes sociais).

O Partido Chega! celebrou, em agosto de 2019, uma aliança pré-eleitoral com o Partido Cidadania e Democracia Cristã, ex-partido Portugal Pro Vida, fundado pelo meu malogrado amigo prof. Luís Botelho Ribeiro, e atualmente liderado por Manuel Matias, mediante a qual membros deste partido integraram como independentes as listas do Chega! às eleições para a Assembleia da República, de outubro de 2019.

Análise ideológica
Comecemos pela análise ideológica do partido Chega. Consultei o seu manifesto, a declaração de princípios, os estatutos, o programa e um documento designado por "70 medidas para reerguer Portugal".

No "manifesto político fundador" o partido define-se como "nacional, conservador, liberal e personalista". A fórmula parece de partido attrape-tout (catch-all), de atração e agregação de descontentes, que abdica de coerência ideológica em proveito da agregação de diversas proveniências. Se numa primeira fase resulta, depois é fundamental a definição ideológica para ganhar consistência e evitar o desmembramento. Porém, a consistência política pode moldar a diversidade ideológica original.

A designação british de conservador não faz muito sentido em Portugal: conservador de quê?... Da corrupção de Estado que atrofia o País há décadas?!... Dos costumes? Então, mais vale tratá-la pelo nome que tem: doutrina social. Pois, se "defende um Estado neutro nas questões religiosas", reconhece "o papel decisivo desempenhado pela Igreja Católica não só na estruturação da civilização europeia mas, também, em toda a História de Portugal". Além disso, o partido é o único a assumir o "combate ao politicamente correto", à "ideologia de género" e ao "marxismo cultural". Trata-se de assumir uma herança cultural judaico-cristã que junta crentes e não-crentes.

O partido configura-se como personalista, uma definição difusa inspirada na classificação do prof. Adriano Moreira, promotor do respeito indeclinável da pessoa humana nas opções políticas, acima de outro qualquer valor. Assim, no manifesto, o Chega eleva a "dignidade da pessoa humana e a vida desde o momento da concepção até ao da morte natural". Nos estatutos (art. 3.º, alínea a), lá está como primeiro princípio e valor fundamental, "a proteção da dignidade da pessoa humana" a par do "valor fundamental da liberdade" - mas conviria estar nos estatutos também a proteção da vida humana, a exemplo do que consta no manifesto.

O Prof. André Ventura afirma-se radicalmente contra o aborto, mas importa clarificar a sua posição sobre o assunto, ainda para mais quando integra o Partido Cidadania e Democracia Cristã (ex-partido Portugal Pro Vida, fundado pelo maior apóstolo contra o aborto que conheci, o meu Amigo Prof. Luís Botelho Ribeiro):
"Não sou eticamente a favor do aborto. Mas se me perguntar se sou capaz de permitir que no meu país haja um processo-crime contra uma mulher que abortou, não sou".

Porque, se o aborto não é crime, então é livre... E, para quem defende a proteção da vida humana, a liberalização do aborto é inadmissível. A exceção de licitude para matar o filho só pode ser o perigo de vida da mãe.

Avulta, no manifesto, a afirmação de que o Chega é um partido liberal. Liberal, no País, que desprezou a inovação ideológica do liberalismo de Francisco Lucas Pires e do seu grupo de Ofir, no CDS, entre 1983 e 1985, continua a ser uma denominação equívoca. O liberalismo português está distante do neoliberalismo norte-americano, de matriz económica radical. Por cá, o liberalismo parece ser ainda entendido como o do período das guerras civis do séc. XIX e da I República: de filiação maçónica, raiz antirreligiosa, militante contra frades e padres e a tradição moral atrofiadora dos novos costumes e poder da burguesia oligárquica, ambiciosa do poder político para consolidar o poder económico e deslumbrar o povo das trevas com as luzes do livre pensamento que impunha um novo respeitinho pelas famílias de posses. O liberalismo português contemporâneo, forjado no blogue Blasfémias do advento dos blogues, de 2003 em diante - o liberalismo do Insurgente e do Portugal Contemporâneo já são de tendência dominante católica. O liberalismo propagandeado nesta corrente moderna é o que chamei de tardoliberalismo: o liberalismo clássico do séc. XVIII, alargado também aos costumes. O liberal não acredita em nada. Senão na liberdade de cada um fazer o que quer. Não defende uma proposta para a economia e a sociedade. E, se na economia, esta liberdade funciona melhor do que o socialismo, continua a ser necessária a intervenção do Estado na execução da lei. Nos costumes, o liberalismo não se distingue do socialismo nos fins e no financiamento: liberdade de abortar, liberdade de adotar crianças independentemente da condição dos pais (não concedendo às crianças o direito a um pai e uma mãe), liberdade de uso (e distribuição) de drogas, liberdade de pagar a mulheres para carregarem filhos de outras, liberdade de manipulação genética, liberdade de eutanásia. Paga o Estado, mas mais decisivo, paga a sociedade... A fundação de, não é aspiração exclusiva do liberalismo. Do liberalismo, salva-se a redução do Estado - desde logo do número de ministérios, deputados e pessoal político -, oposição à extorsão fiscal, a igualdade de oportunidades, a responsabilidade individual.

Nacional - e não nacionalista - significa patriota, defensor da nação, comunidade de origem e destino, que protege e acolhe. Do que se lê no manifesto e nos demais documentos, o Chega não é um partido racista nem xenófobo, atitudes que condena na declaração de princípios e no manifesto fundador: "rejeição clara e assertiva de todas as formas de racismo, xenofobia e de qualquer forma de discriminação". O "fracasso do multiculturalismo", exposto na declaração do princípios, é uma evidência nas sociedades que, depois do caos do nihilismo pós-moderno, o marxismo tomou: luta de classes passada da economia para a cultura e a sociedade, dividindo e opondo grupos étnicos e sexuais.

Ainda no plano ideológico, em oposição à esquerda marxista politicamente correta, globalista e multiculturalista, o partido assume-se, no programa, como pertencendo à "direita identitária", "a nova direita". Porém, se alguns exemplos internacionais de sucesso político recente da direita derivam de correntes extremistas, o Chega recusa explicitamente o racismo e a xenofobia. Mais, não encontro nos documentos, no discurso do Prof. André Ventura e na prática política, qualquer racismo, xenofobia ou filiação, mesmo que remota, às correntes fascistas. Racismo ou xenofobia na fusão biológica e cultural que somos, nesta nação que deu novos mundos ao mundo e no contacto íntimo com essas gentes e espaços se transformou sincreticamente, seria absurdo. Outra coisa, é negligenciar os problemas sociais e económicos de grupos que o Estado tem falhado bastante em integrar, como é o caso de algumas comunidades ciganas, bairros marginais, guetos de imigração e de criminalidade transnacional. A integração laboral é um requisito humano. Além da marginalização social, há também a questão da sustentabilidade dos recursos financeiros escassos e finitos do Estado. Não se trata da cor da pele, da antropobiologia, da cultura, mas da humanidade e responsabilidade. O êxito da conquista do poder por Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018, deve-se ao longo combate ideológico de Olavo de Carvalho e ao persistente discurso político claro, forte e sem ambiguidade, do atual presidente e à coragem dos jovens que mobilizaram a sociedade. Não foi, nem mesmo nos EUA, a neutralidade amoral de valores da chamada direita alternativa (alt-right), filiada no racismo nazi, a causa do sucesso da direita, mas, pelo contrário, a afirmação de valores da fé da cultura, conjugada com um discurso firme sem papas na língua em contraste com a mixórdia de discurso ambíguo na língua bífida da demagogia. Um discurso que até os ateus respeitam pela autenticidade, distinta da ambiguidade socialista que devastou a direita pretensamente arquiconservadora e neoliberal, dos punhos de renda alva e bolsas de veludo sujo.

Sobre o sistema político, o partido Chega advoga a construção de uma nova República, a IV República, livre da corrupção de Estado e do socialismo que há décadas nos degrada e arruína, com um Estado forte mas limitado, desde logo no número de representantes políticos. E no funcionamento, aponta-se para a democracia direta - ainda que não a mencione pelo nome - com eleição por voto secreto dos titulares dos órgãos e nos referendos.


Análise política
No programa político do Chega de 2019 define-se o partido  como "liberal e conservador". Esta tensão ideológica entre duas correntes conflituantes - o liberalismo promovendo a liberdade e o conservadorismo defendendo a ordem - é resolvida politicamente com uma divisão: liberalismo na economia e conservadorismo nos costumes. Como adiante, no programa, se justifica, "um conservadorismo de feição liberal".

O Chega bate-se por uma revisão profunda da Constituição, através de uma assembleia constituinte, em direção à IV República. Fundamenta-se este objetivo central no facto de a Constituição atual (de 2-4-1976) ter sido "imposta manu militari", na linha do Pacto MFA–Partidos (que lembre-se foi proposto por Álvaro Cunhal"), de 11 de abril de 1975, assinado um mês após a provocação do 11 de março. Uma Constituição programática que estipula ainda no seu preâmbulo "abrir caminho para uma sociedade socialista" em vez da neutralidade ideológica que agregue todos os portugueses, incluindo os que não são marxistas. Ora, a última revisão constitucional, de 2005, não engavetou o socialismo, menosprezando os portugueses que pensam de modo diferente.

Na análise da situação atual, o Chega contesta a forma como é exercida pelo Estado a função redistributiva:
"retirar compulsivamente recursos aos que menos poder reivindicativo têm, para os distribuir aos que mais votos representam deixando uma grande parte nas mãos dos que distribuem."
Assim sendo propõem a redução do Estado e a devolução de poder e recursos aos cidadãos.

O programa do Chega rejeita o "marxismo-gramscismo, ou marxismo cultural", uma transmutação pós-moderna do marxismo-leninismo, e o "igualitarismo jacobino". Mais longe ainda, reclama-se de uma "direita moderna euro-americana", contra as "teses e das práticas políticas dos partidos ditos socialistas e/ou sociais-democratas e, em parte, dos partidos democrata-cristãos". Presumo que a inclusão dos democratas-cristãos neste lote decorra da degeneração política de partidos democrata-cristãos que passaram a defender o socialismo na economia e o relativismo pós-moderno nos costumes (como o CDS português). Contra a igualdade rasa que a todos cilindra, elogia-se a diferença. Uma diferença que não ignora a biologia ("ciências da natureza") e por isso se acaba com a promoção da ideologia de género e agenda LGBTI no sistema de ensino . No plano internacional propugna-se uma "euro-integração" (não federal) do País em vez de uma "euro-diluição". Enquanto nos valores se aponta a necessidade de equilíbrio entre direitos e deveres, com preferência pelos direitos positivos "merecidos" em vez dos direitos positivos "adquiridos", tão caros à esquerda das conquistas sociais.

No Estado, o novo partido diz que já Chega... Afirma-se que "a solidariedade não se pode degradar em mero apoio à preguiça", com o exemplo do escândalo da habitação social, e reivindica-se que "urge descorporatizar a sociedade portuguesa".

Nas funções do Estado, opta-se por um modelo de "Estado arbitral", regulador, em vez de "Estado social" cujas funções acessórias devem  ser residuais, atendendo ao princípio da subsidariedade, com maior poder e recursos aos municípios e o reconhecimento da centralidade da família na sociedade. Nas funções de regulação do Estado, recusa-se o fim do emprego pública para a vida e promete-se a redução da carga fiscal (a 45 dias no máximo do soldo de cada cidadão). Nas funções soberanas do Estado, que terão prioridade orçamental, marca-se a "complementaridade entre justiça e segurança" e a "intransigência com o pequeno delito" do qual se passa à criminalidade mais grave. A função patrimonial do Estado é circunscrita ao acervo cultural e outro, concentrando serviços da administração central. Nas funções acessórias do Estado, opta-se por um modelo de utilizador-pagador e de subvenção dos cidadãos em vez das instituições (cheque-saúde, cheque-educação, cheque-habitação).

As propostas políticas concretas inscritas no programa político para 2019 e no documento designado por "70 medidas para reerguer Portugal" ficam para outros postes.

Em conclusão, o novo partido Chega tem virtudes e questões ideológicas a resolver e forças de projeção política disponíveis e mobilizáveis que podem ser agregadas se a clarificação ideológica for feita. Agora, Chega? Não sei...

5 comentários:

  1. Tomás Correia quer Paulo Pedroso na administração do Montepio

    ResponderEliminar
  2. O patriota, defensor da nação, comunidade de origem e destino (que protege e acolhe) é historicamente racista. Ou será que o dr. Balbino não considera patriotaspor exemplo os chineses do visto gold que obtiveram a nacionalidade portuguesa e os cabo-verdianos, brasileiros, guineenses, etc. que também a obtiveram, por alguma razão "sampaística" nomeadamente?

    ResponderEliminar

  3. A Quercus tão preocupada com o ambiente, a subida do nível dos mares, e nem um pio sobre os 11 mil quilos de Césio 137 ( altamente cancerígeno ) do Navio MSC Carla, e do Submarino Nuclear Americano, ambos afundados em frente a Ilha de São Miguel Açores ........... hipócritas !!!!!!!!!!!!!

    https://ramirolopesandrade.blogspot.com/2019/12/a-quercus-tao-preocupada-com-o-ambiente.html

    ResponderEliminar
  4. “Se voltar a fazê-lo será novamente repreendido”, garante Eduardo Ferro Rodrigues.

    ResponderEliminar
  5. Temos correntes liberais em Portugal nos séculos XVI, XVII e XVIII. Quem as matou foi a Inquisição e o Marquês de Pombal. Entenda-se aqui liberal como a defesa do comércio livre, da ascensão social pelo trabalho e da ausência de intervencionismo do Estado na economia. Estas correntes estavam bem presentes nos Jesuítas e nos cristãos-novos e não tinham absolutamente nada de jacobino nem de aventaleiro. Também vamos encontrar estas ideias em apoiantes de D. Miguel na luta contra o seu irmão.

    ResponderEliminar

Os comentários são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Serão eliminados os comentários injuriosos detetados ou que me sejam comunicados.