terça-feira, 23 de dezembro de 2014

X.


L., O Mosteiro e os monges. 2013. Hotel Real Abadia, Alcobaça.


Humano. Tremendamente humano (youtu.be/PpLydrSMeKE).

X. O senhor X. foi como um segundo pai. Desde os meus treze anos quando entrei no Escutismo, que assim foi. Explicou-me, em reunião com outro amigo, agora elevado a outra dignidade, como era. E nunca fiz a coisa por menos. Nunca faço, porque nunca mais deixei de fazer. Desde então, e talvez nos genes, certamente na educação reta.

Demorei a escrever porque não consegui fazê-lo mais cedo. O mais comum é vir de um funeral e escrever como catarse do sofrimento. Não pude. Lá onde está, no céu que brilha sobre cada um de nós, como referência de caminho, ele compreende... Várias vezes me agarrei às teclas e todas as larguei, por dor. Assim uma dor de uma cirurgia íntima que se sabe inevitável, mas que se adia, coisa de homem, que somos, no fundo, crianças, frágeis, por mais machos-alfa que nos ergamos.

Ascendeu, lá pelo final de outubro deste ano misto de 2014, com uma vida cheia de 88 anos, rijo e lúcido até ao fim. Fim que sabia ser o princípio de outra vida. De descanso e, finalmente, plenitude. Ele brincava comigo dizendo que o problema maior seria se, depois de tanta luta, não existisse céu: replicava eu, confessando-me condenado às profundezas do inferno, até minha irmã me ter censurado para parar com o disparate... Se é normal passar pelo Purgatório para largarmos, todos, algum lastro de vaidade, estimo que lá fique pouco tempo. Penitente como era, há-de chegar ao céu sem demora.

Tratávamos mutuamente por «meu comandante». A diferença de idade, que nada lhe dizia, não tinha efeito na deferência. Camaradas, veteranos de muitas guerras, e pazes, umas ganhas e outras perdidas. Saldo positivo, desde logo porque é no caminho que está a felicidade. O prazer é no combate. Como a honra.

Exerceu a atividade profissional de técnico de contas, escriturando livros com uma caligrafia impecável e tinha uma paciência de santo para patrões caprichosos que se incomodavam com diferenças de tostão até que ele lá descobria o erro de funcionários.

Mas onde ganhou evidência, apesar da humildade, foi no serviço do próximo, em Alcobaça. Começou cedo a trabalhar desinteressadamente para os outros, ainda jovem, no Asilo de Infância Desvalida Álvaro Possolo. E depois esteve nos órgãos sociais, frequentemente na direção ou no conselho fiscal, da maioria das associações da terra, de que destaco algumas entre muitas (Bombeiros, Ceeria, Clube de Campismo, Banda, Orquestra Típica) – falho provavelmente outras, pois escrevo de memória.

Foi indispensável no Agrupamento n.º 58 do Corpo Nacional de Escutas, de São Bernardo, em Alcobaça, onde serviu como secretário e supradirigente, mais chefe do que os chefes. E ainda na Junta de Núcleo do Oeste. Preferia a discrição e a influência, à evidência e ao mando. Perdeu o braço esquerdo num acidente, ao serviço do Escutismo. Mas durou-lhe pouco a consternação, fazendo tudo o que antes fazia, com exceção de dormir em campo e de tocar bandolim ou viola, como antes fazia - ficava-se por uma harmónica pequenina que usava para distrair lobitos... Gozava com a  própria situação e respondeu a uma senhora, que o confortava por ser melhor ter perdido o braço esquerdo do que o direito, que... realmente... se tivesse morrido… tinha sido pior!... Não se atrapalhava. Usava os dentes e um ponteiro para clicar no ctrl do teclado...

Teve uma função decisiva na Santa Casa da Misericórdia de Alcobaça, fundada por cristãos em 1563, mas que agora atravessa uma fase de pendor laical, que leva à embaraçada elisão do nome Santa Casa. Foi secretário da mesa administrativa - provedor funcional, na prática, durante os mandatos de Joaquim Augusto de Carvalho ou de Tarcísio Trindade. Perdido o hospital no furor estatizante - e ainda não devolvido à irmandade -, esteve depois na edificação do Lar. Recuperou a coroa real do timbre do brasão da Misericórdia, decapitado em 1974, e conseguiu repor-lhe o santo nome. Conservou o património, e preservou o arquivo, anos a fio, à parte a delapidação dos tempos revolucionários em que desapareceram peças de valor. Gostava de me mostrar, na Casa do Despacho, um livro de atas da assembleia, de onde tinham sido arrancadas folhas e mal coladas outras, num trabalho tosco de algum revolucionário arrependido. Trouxe o nosso amigo Prof. Gérard Leroux, um apaixonado por Alcobaça e pelo seu mosteiro, para organizar o arquivo da Misericórdia, e juntos dirigiram as obras de recuperação da Igreja homónima.

Esteve também no desenvolvimento da Caixa de Crédito Agrícola de Alcobaça, identificando e participando nas negociações de compra do espaço da sua sede e apoiando ao longo dos anos, na direção, a administração prudente, e de crescimento sólido, de José Fernando Maia Alexandre.

Cuidou muito do Mosteiro nos anos tumultuosos, em que ninguém protegia nada e os roubos foram muitos. Pintava a verde o contorno dos painéis de azulejos do antigo tribunal e dos painéis do exterior do Mosteiro, junto à capela de Nossa Senhora do Desterro, para significar aos larápios que estava a acompanhar o andamento dos furtos. Entendia que as pedras são importantes, mas as pessoas são mais. Vivas. E, por isso, acreditava no nosso projeto de retorno dos monges de Cister a um cantinho do seu mosteiro de Santa Maria de Alcobaça.

Gostava de cuidar do património público, antes de ter vindo a moda, e criou coleções,, que mandava encadernar, de publicações locais, que guardava carinhosamente numa dependência da sua casa antiga com vista magnífica para o Mosteiro: Empenhava-se a recuperar coisas e papéis, e vibrava a agricultar frutos e flores, no quintal e na sua quinta do Casal do Botas. Cuidava da natureza e do património como extensão da família, esposa e filhos e neto, e irmãos e descendentes, que acarinhava. Curioso da história, da cultura, das artes (caligrafia e fotografia), da música (tocava e cantava). Polifacetado, como são os grandes homens.

A sua Alcobaça foi uma terra de contrastes. Desenvolvida desde o século XVI à volta da cerca do Mosteiro, o burgo teve sempre com este uma relação de amor e de inveja, de orgulho e de despeito. A vila tinha a Fonte dos Talassas mas também a rua «Dezesseis de Outubro» que assinala a vergonhosa data em que foi assaltado o mosteiro pelas tropas napoleónicas, depois saqueado o pela população e queimados alguns bens, viu ser destruída à bomba a Igreja Matriz, ser demolida a capela da Senhora da Paz e dessacralizada a Igreja de Santo António. Alcobaça, núcleo geo-histórico de Portugal, cabeça da Ordem de Cister que consolidou a independência do País, com a organização económica e a criação de bem-estar nas populações, foi uma povoação doravante sujeita à divisão laica-religiosa, à moda das novelas de Giovannino Guareschi, com uma ativa maçonaria antirreligiosa aliada a um setor criptocomunista burguês, desejosa de correr com a Igreja do mosteiro. X. era um plebeu, avesso às linhagens velhas e novas da oligarquia local, e dizia que Alcobaça tanto era do senhor Dr. N. como da Maria dos Três Cus...

Foi por causa dessa divisão absurda, num povo desejoso de fazer a paz com a história, que tive a ideia, e promovi, com a ajuda dele, de outros conterrâneos amigos e de empresas, a edificação de uma estátua a São Bernardo, sem qualquer comparticipação do Estado, que a Câmara deixou, após peripécias várias e muita paciência nossa, pôr a meio quilómetro do Mosteiro que o santo mandou erguer. Brincava com ele: a Câmara desterrou o São Bernardo para a rotunda da escola D. Inês de Castro e quer colocar a D. Inês de Castro junto ao mosteiro que o santo mandou erguer…

Era muito atento às notícias locais e colaborou, durante décadas, na contabilidade e não só, no jornal «O Alcoa» - um quinzenário da paróquia, resistente ao recuo da Igreja para a sacristia, que mantém independência face ao poder político, e deve ter, por aí, metade da circulação do Diário de Notícias.

Depois de eu ter entrado para o Escutismo, esteve sempre comigo. Primeiro, acompanhando a formação, depois orientando e a seguir trabalhando em conjunto. Com a evangelização que o atual bispo D. José Traquina, fez enquanto seminarista e jovem padre, em Alcobaça, e que germinou, com o padre Mário Rui Pedras na criação do escutismo no Valado dos Frades e na Benedita, e a colaboração de António Soares e Diamantino Pascoal, consolidou-se o agrupamento. E então fomos semeando, ou ajudando a plantar, com outros irmãos de fé e de nós, agrupamentos em Alfeizerão, Vimeiro, Famalicão da Nazaré, São Martinho do Porto, Pataias e Maiorga. E liderando a resistência pacífica à invasão do IPPC/IPAAR e expulsão da Igreja do Mosteiro, mantendo instalações da catequese e garantindo uma sede para o Escutismo.

E, depois do Escutismo, quando a família precisou de uma atenção que a intensidade de trabalho não consentia, continuou comigo, nos iniciativas e projetos que eu realizava: a elevação de Alcobaça a Cidade; o Encontro Nacional de Mosteiros, Conventos e Igrejas afetos ao IPPAR que ergueu um «basta!» na tomada de espaços e de obras de arte pelo Estado à Igreja; a Associação para o Desenvolvimento da Região; a defesa da unidade do concelho de Alcobaça, a Academia de Cultura, a estátua de São Bernardo.

X. nunca teve qualquer cargo autárquico, nem foi candidato. Era cristão e homem de fé, antigo membro da Ação Católica e adepto da doutrina social da Igreja. E via com preocupação, como outros amigos bairristas - uns que já lá estão no céu à espera dele para uma festa e outros que nos havemos de lhes juntar -, a decadência de Alcobaça.

Quando a exigência moral da luta contra o estatal abuso sexual de crianças e o combate político nacional se sobrepôs, ficou triste por eu preferir abdicar de Alcobaça, um sonho que tive e se evanesceu. Mas compreendeu o esforço de me concentrar na Pátria. E, embora, nunca mo dissesse - nem eu lho perguntasse... -, acho que até comprou um computador com ligação à net para me ler. Havia coisas que não explicávamos um ao outro. Queria que eu me acomodasse um pouco para evoluir, pois achava um desperdício a luta nacional, que via inconsequente. Creio que, no fundo, compreendia a minha opção. Contactado telefonicamente, no auge do processo que me pôs o primeiro-ministro, por uma jornalista do DN, para opinar sobre mim, , fez-lhe uma série de confidências exageradas sobre o meu caráter e contou que eu já não desceria da quinta para a cidade, senão por toque de sino. Pediu que não publicasse. No dia seguinte, lá estava o folclore mal impresso. Percebeu o jogo de esgrima florentina em que nos cercam capas, capuzes, máscaras e sombras, e que nesse campo temos de ser ágeis na esquiva e furtivos na espada.

X. era a pessoa mais popular que conheci. Fazia amizades facilmente. Cumprimentava efusivamente, e falava com todos e com mais alguns. E toda a gente o estimava, mesmo adversários de convicções e de clube (era do Sporting, como eu). Tornava-se um exercício penoso, se houvesse pressa, atravessar a praça do mosteiro com ele, porque podia demorar três quartos de hora nos trezentos metros da farmácia aos correios. Uma vez perguntei-lhe quem era aquele indivíduo que o havia saudado e a quem perguntou pela família, errando na prole, e ele confessou-me que não fazia a mínima ideia,,, Nesses casos, improvisava, admitindo o engano e respondendo: «pois é, já me esquecia!...». Costumava sair-se bem...

Conservador nos princípios, era heterodoxo no estilo. Tinha um humor fulgurante e corrosivo. Crismava, com alcunhas terríveis, figurões patéticos. Inventou uma linguagem própria, que usava para espanto das companhias. Jamais cruel, possuía muito bom coração e comovia-se facilmente, inundando os olhos negros de lágrimas doces. Exibia uma energia física que contagiava gente mais nova e com genica presa. E, abraçada a iniciativa, demonstrava um empenhamento meticuloso nos projetos. Enganava-se, às vezes, nas pessoas que escolhia, e que o desiludiam por ambições pessoais, e lamentava-se com amargura, numa penitência muito sofrida. Compensava com histórias tragico-cómicas que contava com prazer descarado.

Visitava-o com frequência. Tocava à campainha do segundo andar, subia, na escada empinada os degraus dois a dois, o cachorrito enrodilhava-se nos meus pés, a senhora D. F. escancarava a porta, cumprimentava-me, perguntava pela família e invariavelmente dizia: «o teu comandante está no escritório». Ele recebia-me de gravata ou casaco de roupão, consoante fosse tarde ou noite, com um abraço apertado, olhos redondos vivos, que só caíram para mais mortiços nos últimos tempos mas sempre alegres e crentes. Aconchegava-me na cadeira de entrançado de palha, junto à guitarra pendurada no canto do pequeno escritório, ele defronte à secretária, onde amontoava, com aparência dispersa, mas por ordem que sabia, papéis, recortes, discos, lembranças, e uma lupa. Discutíamos o presente de modo acalorado e, quando excedíamos os decibéis de uso no lar, a senhora D. F. aparecia a dizer que quem não nos conhecesse suporia que estaríamos a ralhar. Ele desculpava-se: «ó 'Miga, estamos só a falar». Experiente das coisas e dos homens, era cético sobre a possibilidade de grandes mudanças nas instituições, mas isso não o impedia de se empenhar a fundo nos projetos em que participou.

Partiu. Mas gente como ele, fica sempre. Nas memórias e nos corações. Connosco. Não são carga. São lanternas para nos mantermos na estrada, a direito e sem desvios. Com fé e força.


X. merecia uma rua, pelo exemplo de trabalho pelos outros que a sua vida inteira foi. Preferencialmente, a sua, em vez do nome almirante Cândido dos Reis que povoa para-aí-metade das cidades e das vilas do País.... Mas entendo que, lá onde se encontra, verá este facto com ironia e consolo. Foi para Deus que trabalhou. Deus o guarde na Sua Glória!


Atualização em 27-7-2015.

2 comentários:

  1. A decência da pátria, depois da decadência de Alcobaça. Pouco a fazer, perante a força brutal da natureza (a absoluta displicência como os descendents de Afonso Henriques tratam da herança ainda existentes).

    Apenas umas filhoses, fazem diminuir a dureza presente.

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  2. Destes já nã se fazem e muito menos aparecem nos media do regime.

    Agora é só jogadores de futebol metrossexuais que fazem anúncios de cuecas.

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